sábado, 30 de janeiro de 2010

Capítulo III - Em Casa de Emílio

     Um banho sempre cai bem. Emílio morava sozinho desde a morte de sua mãe. Fora filho único, e nunca conhecera o pai. Não era uma vida muito feliz, mas ele nunca parecia estar abatido. Precisaria continuar trabalhando, para se sustentar, mas trabalhava na rua, em plena luz do dia. Tinha que falar com o chefe.

     Saindo do banheiro, ainda enrolado em sua toalha, disse a Lionel e Eva que poderiam ficar à vontade e tomar um banho, também, se lhes agradasse.

     - O banho frio lhe fez bem, Emilio. Mas, se continuar me olhando desse jeito, precisará de outro banho frio. - e Eva sorriu, cinicamente, quase se sentindo lisonjeada com a admiração do rapaz.

     Também, pudera! - pensou - Aquela mulher impecavelmente linda, tão diferente do que ele estava acostumado a ver, estava sentada em seu sofá, as belíssimas pernas cruzadas. E o decote? Fatal! Não que mostrasse muito, mas despertava sua curiosidade. Que busto! Ela o olhava, esperando uma reação. Definitivamente, aquela atração era mais do que ele suportaria. Apaixonara-se no primeiro olhar. E mais no segundo, e mais no terceiro. Mas, havia algo de diferente em sua paixão. Era muito mais luxúria do que sentimento, mas uma luxúria completamente natural, saudável, justificável. Era o instinto lhe chamando, e ele não queria resistir.

     Mas resistiu.

     Pegou o telefone, para ligar para o patrão. Lionel levantou-se do sofá, e desapareceu no corredor. Eva já levantava, sobressaltada, para segui-lo, quando ele retornou com taças e um vidro de vinho.

     - Não! Esse é o... Alô! Olá, doutor Pereira. - Faz um gesto para que Lionel devolva a garrafa a seu lugar - Sim, sou eu, senhor! Sei, sim, sim, certo, doutor Pereira! Não, doutor Pereira, é que... desculpe, doutor, sei que já é noite, doutor... Saúde, isso, foi problema de saúde, só agora pude ligar. É. - Lionel abre a garrafa - Não! guarda isso! Não, doutor Pereira, não foi com o senhor, desculpe. Só um minutinho, por favor! Lionel, ponha isso de volta, já! Sim, doutor Pereira, estou aqui, sim. É que eu fui assaltado, levaram meu telefone... sim, eu sei que o telefone é da empresa... certo, eu pagarei, doutor, mas... eu sei que já... Sim, foi saúde e assalto... É que... Desculpe! Ok, doutor... sim, senhor, tchau!

     - Esse seu chefe não ouve muito, não é, mesmo?
     - Eh, é verdade... Mas, hoje, ele estava pior. E eu, agora, também estou na pior. Perdi o emprego.
     - Mas ele não pode demitir assim, pode?
     - Acho que não, mas... Ei, Lionel! Devolva este vinho para o seu lugar, agora! Ele é muito caro! Era para comemorar uma ocasião especial!
     - Então, vamos comemorar! Este vinho é o meu sangue derramado por muitos, representando a nova aliança, e blá, blá, blá...
     - Me dá isso, aqui!
     - Tomai e bebei até trocar as pernas!

     Emílio tenta pegar a garrafa, Lionel se esquiva com uma velocidade incrível, e Emílio cai no chão.

     - Eu sei que é suicídio, mas, juro que, se te pego, eu te mato agora, mesmo!

     Lionel se esquiva, novamente, às gargalhadas, e derruba sem querer uma das taças de cristal, cheia de vinho, no tapete branco da sala. Emílio perde a paciência e a compostura.

     - Ah! Dane-se! Pra fora da minha casa, já! Vamos, eu não estou de brincadeira!
     - Hum, você não sabe ser divertido...
     - Já para fora, Lionel!
     - Vai fazer o que? Chamar a polícia? - Provoca.
     - Lionel, devolve a taça e o vinho. - intervém Eva, que acompanhava a tudo sem mover um cílio - A brincadeira já passou dos limites.
     - Ui! Oui, Madame! - Ironiza Lionel, entregando tudo a Emílio.

     Lionel já ia saindo da casa, quando Eva o deteve.

     - Ainda, não! Você não pode sair agora.
     - Bem lembrado, Eva! Você ainda vai limpar o tapete! - Dirigiu-se a Lionel.
     - Vai sonhando. Por que, Eva? - questionou Lionel.

     A campainha tocou. Lionel se escondeu, e Emilio foi ver quem era, no olho mágico. Eva respirou fundo, como farejasse algo, e disse que deixasse entrar. Era um homem grande, forte, aparência nórdica, quase um homem de neandertal, de tão grande e nórdico. Mas, bonitão, bem apessoado. Entrou, com o ar sóbrio e concentrado, sem dizer uma palavra. Estranhando, Emílio brincou:

     - Eva? Quem é este? Adão? - O rapaz olhou para Emílio com aquele olhar de quem nunca ri, e Emílio logo compreendeu. - Não. Vocês estão de brincadeira, comigo! Adão e Eva! Isso é palhaçada!

     Somente quando Adão passou, Emílio pôde perceber, atrás dele, dois jovens, ruivos, que pareciam gêmeos. Emílio não fez uma só pergunta, simplesmente os deixou entrar. Todos olhavam seriamente para Lionel que, impávido, parecia rir-se por dentro. Não lhe parecia bom presságio. Emílio, nervoso, bebeu num só gole o vinho que Lionel lhe havia servido.

     Apresentados os jovens como Caim e Abel, Emílio conteve uma gargalhada, talvez pelo nervosismo, talvez por achar, realmente, cômica a situação. Começou a beber com vontade o vinho, direto da garrafa. Eva tomou-lha, com veemência.

     - Não faça isso! Veja bem. Iremos explicar cada mínimo detalhe, mas você tem que ter paciência.
     - Paciência? - Emílio já parecia estar alcoolizado.
     - Vou lhe adiantar o mínimo. Para sobrevivermos, nós precisamos nos organizar. Criamos regras, e um conselho que se reúne regularmente. Você sabe que Lionel é um degredado; por nós, ele já haveria sido pego. Mas não podemos, nós, vampiros, matar um outro vampiro. Criamos, então, uma força-tarefa, destinada a preparar o terreno para os caçadores de vampiros que querem matar Lionel...
     - Hum... vocês são agentes secretos? - brinca Emílio
     - Escute, é sério! Quando soubemos que você foi transformado, tivemos que abortar a missão, para salvar a sua vida. Então, eu solicitei reforços, para prender Lionel e mantê-los em segurança. Agora, você também vem conosco.
     - Vou para onde? Não vou a lugar nenhum!
     - Venha conosco, sim?

     Quem o chamou com um tom de voz tão suave quanto imperativo foi Adão. Sua voz mais parecia um trovão, de tão grave, e quebrava um silêncio de segundos, que mais pareceu durar uma eternidade.

     Contra sua vontade, mas já sem nada a perder, Emílio saiu.

     - Posso ser Noé? Noé também fica em gênesis, não é?

     Lionel riu. Apenas ele. Concordava que aqueles nomes eram uma piada, mas ria, na verdade, da total embriaguez de Emílio. Os demais permaneceram graves. Entraram em uma Van preta que os esperava em frente ao prédio, e partiram.

Pablo de Araújo Gomes

sábado, 23 de janeiro de 2010

Capítulo II - Eva

     "Uau! Como a noite é linda!". Foi a primeira coisa que Emílio pensou, quando saiu do suntuoso mausoléu. Mas ainda estava intrigado. Quem era aquele homem, que lhe socorria? Aparentava seus quarenta e poucos anos, fisicamente, mas tinha um olhar enigmático. Agia como um adolescente, jovial demais, mas parecia muito experiente.

     - Quantos anos você tem?
     - Opa! Devagar com o andor, meu amigo! Nunca lhe disseram que é falta de educação perguntar a idade?
     - Você não me disse nem o seu nome. Eu tinha que saber alguma...
     - Lionel Giardini, seu criado! Tinha vinte e um anos, quando fui vampirizado.
     - Vampiros envelhecem?
     - Você está muito indiscreto, meu rapaz!
     - Desculpe. Giardini? Você não é daqui, é?
     - Vivo no Brasil há bastante tempo, se é o que quer saber. Ainda encontro aquele maldito Napoleão, uma outra vez, e acabo com a raça dele!
     - Ele também é vampiro?
     - Não seja ridículo! Claro que não!
     - Então, o que ele tem Napoleão?
     - Esquece isso! Você não se sente mais leve? Mais desprendido de medos espirituais?
     - Ainda não deu tempo de perceber, mas... eu acho que entendo...
     - Você não tem mais medos do inferno ou de toda essa baboseira, porque não tem mais espírito! Sua alma foi libertada, meu amigo! Ela não está mais por aqui. É isso que nos faz vampiros, entende? O sangue é a alma da carne. Você tem as lembranças de Emílio, você tem a identidade de Emílio, você tem tudo de Emílio, mas não é mais Emílio. Sinto lhe dizer! Emílio morreu! Salvei apenas a vida de seu corpo. Mas, não se preocupe. Sua alma voltará, um dia.
     - Quer dizer que, quando eu morrer, tudo vai acabar?
     - Ai, que drama! Sim, para você, sim. Tudo vai acabar para você. Mas, um dia, você vai desejar isso. E, aí, poderá aproveitar a oportunidade, antes que a depressão passe. Mas, vou logo lhe avisando, viver muito não dá aquela paranóia de a vida perder a graça, não. As coisas mudam muito rapidamente, ainda mais hoje em dia! Sempre há novidades para experimentar.
     - Então, é assim que as coisas são...
     - Assim, mesmo! Então, não é melhor deixar de papo furado? É hora de aproveitar!

     Chegaram a uma multidão, parecia alguma festividade religiosa, dia de "São alguma coisa". Havia barracas com espetinho, de um lado, e um parque com filas enormes de crianças, para os carrinhos de bate-bate e casais para a roda gigante.

     - Alguém já encontrou a própria alma? Quer dizer, você já soube de algum caso?
     - E como iam se reconhecer? Você, por acaso, lembra de alguma outra vida?
     - Claro que não!
     - Então! De uma vida para outra, a alma não lembra de praticamente nada. E, não sei se você já percebeu que nossa percepção do mundo muda, mas não consegue enxergar as almas, consegue?
     - É verdade! - Emílio estava hipnotizado com o que ocorria à sua volta -  Não é lindo o som da noite?
     - Lindo! E a noite tem sons diferentes em cada lugar do mundo, nunca se repete. Você vai ver!

     Sem razão aparente, Lionel saiu correndo, desaparecendo na multidão. Deixou Emílio, ainda tentando se encontrar. Emílio nunca havia percebido como é gostoso o cheiro de gente. Não o de perfume. O de gente. Dava, mesmo, vontade de morder e chupar até a alma. Deve ser por isso que se faz tão mau juízo dos vampiros. Algum, certamente, não se conteve e...
     Uma linda mulher apareceu, do nada, e o puxou pelo braço.

     - Você é louco, ou o que?
     - O que?

     Ele parou, por um instante, enquanto ela o arrastava para longe, puxando-o pelo braço. Era realmente linda! Ruiva, cabelos ondulados, ao sabor do vento, belas sardas nos seios da face, e nos do decote, também.

     - Você está me ouvindo? - ela interrompe seu devaneio - Ei, acorde! Você é novato, nisso, não é?
     - Novato, eu?
     - Vamos, não estou com paciência! - ela o encosta contra a parede, e pergunta irritada, em voz baixa - Você é um vampiro há quanto tempo?
     - Dá para notar, assim?
     - Você 'tava dando uma bandeira horrível! Vamos, vamos sair daqui. Lionel está por perto, com certeza tem algum caça-vampiros por aí.
     - Caça-vampiros existem? Ei, eu conheço Lionel!
     - Não me diga que você foi transformado por ele!
     - Por que? Isso é ruim?
     - Ai, você foi! Aquele filho da... venha, temos que salvar aquele desgraçado!
     - Não estou entendendo.
     - Agora não dá tempo de conversar. Vamos!

     Ela o jogou dentro de uma capelinha e mandou que não saísse dali. E saiu, rapidamente. Ele ficou lá, sentado, recolhido, de costas para o altar. O lugar era pequeno, e Emílio o descreveria como acolhedor, não fosse o terrível medo de olhar para a cruz. Ela lhe oferecia algum risco? Quase entrou em pânico, ao perceber que havia cruzes por toda a parte. Fechou os olhos, e aguardou, impaciente. Em meia hora - que lhe pareceu um dia inteiro -, estava ela, de volta, com Lionel. Pareceria uma mãe carregando o filho pela orelha, se ela não aparentasse a metade da idade dele.

     - Seu irresponsável! Como pode vampirizar alguém, ainda por cima tão jovem, sabendo que é caçado?
     - Sou caçado há séculos! E não é modo de dizer... - sorriu, cínico, talvez com orgulho de não ter sido nunca pego - Na verdade, os últimos séculos me pareceram décadas... Ai! - a bela moça o fustigava com algo que Emílio não pôde reconhecer - Ei, ele já ia morrer, mesmo! Eu salvei ele! E, também, ninguém nunca me pegou, mesmo! Fique peixe!
     - Estou muito peixe, gracinha! E tenha modos comigo, fale como gente! Pois lembre que, sem minha intervenção, você agora seria apenas uma lembrança ruim.
     - Ei, dá para alguém me explicar que diabos está acontecendo, aqui? - reivindicou a atenção, Emílio.
     - Cuidado com o linguajar, meu caro! Você está numa capela...
     - Cale-se, Lionel! - havia um veludo na sua voz, mas isso não tornava sua ordem menos imperiosa - Deixe-me explicar, meu jovem. Como é, mesmo, o seu nome?
     - Emílio.
     - Pois bem, Emílio. Você foi transformado por este irresponsável aqui. Não acredite em uma palavra do que ele diz. Não dá para escrever tudo o que ele diz. Lionel causa muitos problemas em todos os lugares aonde vai. Por isso, foi degredado de nossa comunidade e está sendo impiedosamente perseguido em cada canto do mundo. A qualquer momento, conseguirão dar cabo dele. Ele é a cabeça mais cara de todas a prêmio, e os caçadores de vampiros já estão tendo que dividir espaço com alguns aventureiros, caçadores de recompensa. - dirige-se, agora, a Lionel - Aliás, se não foi pego, ainda, é porque alguns desses caras só atrapalham tudo, com estacas e crucifixos... Pois bem, se ele for eliminado, você pode dar adeus a esse mundo. Acabou, pra você, também! Você me entende?

     - Quer dizer que eu estou sujeito a morrer a qualquer momento? Sempre vou depender da astúcia desse aí?
     - Está, sim. Terá que velar pela sua vida, e pela dele, se quer viver. Mas isso não é para sempre, não. Depois de algum tempo, sua vida ganha independência, e vai poder se livrar desse canalha.
     - Então, estou entregue à sorte, por enquanto? - "É", ela respondeu - Por quanto tempo?
     - Não se sabe ao certo. Alguns vampiros passam décadas; outros, meses.
     - Quer dizer que devo passar meses, ou até anos, para me livrar?
     - Alguns entre nós tornaram-se lendas, alcançando a independência em tempo recorde. Há um vampiro muito poderoso, que passou três meses. Acho que foi o mais rápido. Mas ele já nasceu com o traquejo de quem é poderoso, não parece muito ser o seu caso. Terá muito trabalho!

     - Você já é independente há muito tempo?
     - Não se iluda com minha aparência, meu rapaz, eu poderia de ser tataravó da sua tataravó, e não gosto de fraldas...
     - Mas, eu não...
     - Não há como não perceber quando alguém quer me paquerar. Até o seu cheiro mudou, quando me viu. Agora, vamos para a sua casa. Você deve estar precisando de um bom banho!
     - Espera. Como é o seu nome?
     - Me chame de Eva.
     - Eva de que?
     - Eva!


Pablo de Araújo Gomes

sábado, 16 de janeiro de 2010

Capítulo I - O 1° Dia de Vampiro


     Ele era um vampiro. Acabara de ficar sabendo. Na verdade, ele acabava de acordar, e sabia, sem que se lhe dissesse nada, que era um vampiro. Era a sua primeira manhã como um, e ele não lembrava de nada. Sabia, apenas, como por instinto. E devia ser, mesmo, por instinto. Ele acordou completamente só, naquele lugar estranho. Era um mausoléu de luxo. Certamente, ele estaria em um cemitério.

     De que conseguia lembrar? Tinha a vaga impressão de ter sido atacado. Mas nada que lembrasse o que lera nos livros. Nada parecido com aquela morte agonizante que precede o renascer para a nova vida, como vampiro. Sentia, agora, muito frio, apesar do dia quente, lá fora. Estava sem camisa. Onde, diabos, estava sua camisa? Lá fora, o sol já nascera, e cumpria cruelmente seu papel natural de carcereiro. Mas, dentro daquele sepulcro, ele estava bem protegido.

     Caramba, que fome! Amaldiçoava sua fome, sem parar. Sentia uma fome de cão. Ou, melhor, de vampiro. Na verdade, talvez por costume, pensava, mesmo, nas torradas com cafezinho que sempre tomava no café da manhã. Não tinha lá grande interesse por sangue. Teria, ele, se transformado pela metade? Será que teria sido colocado lá para esperar um pouco, até a completa transformação? Olhou em volta, e confirmou que continuava tendo aversão a caixões. E a mortos, permanecia uma rejeição nada sutil. O que será que lhe faltava, para se tornar um vampiro completo?

     Olhou em volta, com atenção. Aquele lugar, tão belamente decorado, certamente seria o lar do seu captor. Revirou tudo o que viu. Havia um caixão fechado, por fora, e dois abertos. Conferiu, também, se não havia alguma passagem secreta: conferiu vasos de planta, as estátuas, os castiçais e o quadro com o epitáfio, sobre o caixão fechado. Em busca de uma saída subterrânea, revirou carpetes, afastou o que viu por perto. De fato, não sobrou mais nada que conferir, em busca de uma passagem secreta. Se havia uma, certamente era mágica, mas não achou que tal teoria fizesse sentido.

     Em desespero, derrubou no chão um vaso de vidro com rosas vermelhas dentro. Com o susto que levou, ao ver quebrar-se o vaso, voltou a si. Resolveu recolher os cacos, e se cortou. Por reflexo, puxou a mão, e esperou aparecer o sangue. Nada. Claro, ele era um vampiro. Mas não viu a mão se regenerar rapidamente, como já vira dezenas de vezes nos filmes. Se não se sentia à vontade em um cemitério, não era capaz de se regenerar, e não se sentia especialmente poderoso, qual era a graça de ser um vampiro? Ainda, para completar, não podia sair de lá, por causa do Sol. Procurou o seu telefone, para ligar para alguém, mas não o encontrou. Telefone, documentos, carteira, não tinha nada consigo. Se bem que, o que ele faria? Ligaria para o chefe e diria "não posso ir para o trabalho hoje, porque virei um vampiro"? Impotente e aborrecido, recostou-se no banco onde acordara, e acabou caindo no sono.


     Anoitecera, e ele nem percebeu. Um péssimo dia, este primeiro que tivera como vampiro. Seria bom que os muitos seguintes, pela eternidade, fossem bem melhores, ou não valeria a pena. Levantou-se, morrendo de fome. Já pensava em atacar a primeira pessoa que passasse na sua frente. Os dentes ainda estavam curtos, mas haveriam de aparecer na hora certa, ele pensou. Na saída do pequeno prédio fúnebre, no entanto, esbarrou num senhor que veio do nada e o empurrou, de volta, para dentro.

     - Ainda não. Entra. Não podemos ser vistos, ainda.

     Pôs no banco a sacola plástica que carregava, ao entrar. Puxou Emílio - esse é o nome do vampiro novato - pela mão e o sentou.

     - Quem é você? - perguntou Emílio.
     - Você deve estar morto de fome, né? - disse o senhor, examinando Emílio como o faria um médico. Desculpe-me! Eu trouxe um lanchinho para aliviar a sua fome, por enquanto.
     - Quem é você?
     - Não se preocupe. Logo, o cemitério fechará, e poderemos sair deste lugar horrível. Tome. Você gosta de cachorro quente?

     Emílio, confuso, mas faminto, não recusou o alimento. Retrucou, no entanto:

     - Lugar horrível? Você não vive aqui?
     - Você deve estar de brincadeira. - Viu que Emílio continuava sério - Não, não, não! O que pensa que eu sou? Um necrófilo?
     - Não é um vampiro?
     - Isso é bem verdade. Mas você também é, agora. Quer morar num mausoléu?
     - Claro que não!
     - E o que lhe faz crer que eu ia querer? Tome, você ainda não bebeu o guaraná.
     - Não vamos beber sangue? Quer dizer...
     - Ai, caramba! Parece que você vai me dar bastante trabalho. Vampiros não se alimentam de sangue, isso é lenda!
     - Até hoje de manhã, vampiros eram uma lenda, para mim.
     - Mas não somos, mais. Agora que você já sabe, aplique a lógica. Não se sabe exatamente quando surgiu o primeiro vampiro. O mais antigo que conhecemos ainda vive, e é vampiro desde algum dia no século V. Somente por esses cerca de mil e quinhentos anos, com três refeições ao dia, sabe quantas pessoas ele já teria matado?
     - Não faço idéia!
     - Deixe-me clarear a sua mente. Seriam mais de um milhão e seiscentas vidas, se ele não fizesse um só lanchinho a mais. E nós já somos alguns milhares, meu amigo! Ou nós extinguiríamos a raça humana, ou, por isso, mesmo, nos tornaríamos inimigos declarados. Não conseguiríamos ser apenas uma lenda, jamais!
     - Mas, você me mordeu!
     - Ah, é... Desculpe o mau jeito! A velha etiqueta diria que eu tinha que te dar a escolha e toda aquela baboseira. Mas eu sei que você não vai reclamar, porque já ia morrer, mesmo...
     - Ia o quê?
     - Ah, você não lembra de nada? Não sente falta de nada, não?
     - Claro! Você levou meu telefone celular, minha carteira, minha roupa...
     - Epa, peraí! Levei a sua camisa, rasgada e cheia de sangue. Acho que você não ia querer, mais. E isso aqui, que removi do seu coração, também levei. - entrega-lhe uma bala - O telefone e a carteira, foram os assaltantes quem levou!

     Emílio põe a mão no peito, ainda dolorido. Olhou para a mão, e nenhum sinal daquela ferida. Ele se regenerava rapidamente, então. Não tão rapidamente, mas mais do que antes, com certeza.
     - Bem, já vi que você não vai me agradecer. Toma esta camisa. Vista-a, que iremos sair.


Pablo de Araújo Gomes