sábado, 27 de março de 2010

Suspensão das atividades

     Sinto informar, caros leitores, que as circunstâncias me compelem a suspender as atividades deste blog por uns tempos, devendo retomá-las tão logo seja possível. Apesar do inconveniente, espero que compreendam, e vejam nisto uma oportunidade para reler os textos publicados e tentarem decifrar o mistério que ronda Emílio e seus novos amigos.

Grato pela compreensão,
Pablo de Araújo Gomes

sábado, 20 de março de 2010

Capítulo X - A Nova Missão de Eva

     Emílio acordou com o som de chaves. Após alguns segundos, tentando se situar, identificou onde estava. Estava na casa do senhor Katze, e eram as suas chaves que acordavam Emílio. Michelle já estava acordada, pronta para sair, e velava seu sono. Naquela casa, a cama de casal era a única coisa realmente grande. Não é à toa que ocupava quase todo o quarto. As roupas do simpático senhor eram guardadas em um baú, ao lado da cama. A sala era pequena, e possuía apenas uma poltrona e uma cadeira de balanço, ambos um tanto desgastadas. A cozinha era praticamente inexistente, e se resumia a uma pia e uma antiga geladeira quebrada, que fazia as vezes de armário. Era possível deduzir, com isto, que o senhor não passava muito tempo em casa. Um banheiro bem pequeno, rebocado com cimento, o acabamento mal feito, definitivamente não inspirava muita confiança em sua higiene. Era um casebre, por fim, bastante simples. E o melhor para Emílio e Michelle é que não tinha uma só janela. Somente pela porta da frente é que se podia entrar e sair, pois a minúscula casa se espremia timidamente entre outros três pequenos imóveis, certamente muito semelhantes a ela, naquela pobre vila construída há décadas, em um terreno invadido.

     - Levante-se, mon amour, e vista estas roupas aqui. Sairemos logo.

     Michelle entregou-lhe roupas bastante formais, dignas de serem usadas em uma reunião de negócios. Ele as tomou e se pôs a vesti-las. Herr Katze, bom anfitrião que era, servira uma modesta mesa que improvisara no meio da sala, e sentaram-se para jantar.

     - Sinto muito que não seja um banquete. - disse o Herr Katze, cerimoniosamente - Comprei o melhor jantar da região, mas receio que seja demasiado simples para vocês.
     - O que é isso, Sr. Katze? - respondeu, docemente, Michelle - Sabe que não faço cerimônia. Além do que, ter feito tanto por nós, sem precisar, já está de ótimo tamanho.
     - Faço-o com prazer, senhorita. Bem o sabes. - retrucou, ainda, o senhor, sorridente - Com o perdão pela ironia, você foi como um sol na minha vida. Pena que sempre demora tanto a vir me visitar, e logo não mais a verei.
     - Deixe disso. - Michelle parecia sentida, mas tentou falar com delicadeza - O senhor ainda tem muito tempo nessa vida, e ainda nos veremos muito.
     - Não estou muito convencido disso... - O simpático e sorridente senhor tinha lágrimas nos olhos, ao dizer isto, mas tentou manter a compostura - Comamos logo! O tempo corre, e não tarda a hora de vocês partirem para o aeroporto.

     Emílio, claro, não entendeu a profundidade deste breve diálogo. Desconhecia quem era o Sr. Katze Stern. Desconhecia que ele era, desde a juventude, apaixonado pela Srta. Michelle, que conhecera ainda na velha Alemanha Oriental, devastada pela recém-acabada Segunda Guerra Mundial. Ignorava, também, que era por ela que ele estava no Brasil, pois ao saber que ela para cá viajaria, e reparando quanto mistério ela fazia sobre as causas de sua viagem, suspeitou que Michelle fosse uma comunista, em missão revolucionária. Deste modo, também se credenciou para receber o treinamento e lutar pela causa revolucionária no Brasil. O então jovem Stern demorou a entender que Michelle não era comunista, e sua demora em percebê-lo lhe custou a liberdade. Foi preso político, e sobreviveu a duras penas, agora, ao regime ditatorial brasileiro, pouco tempo após ter sobrevivido a anos de violências e trabalhos forçados em campos de concentração nazistas. Foi Michelle quem o resgatou, e foi nesta época que ele conheceu "Eva". Somente assim, soube algo do grande segredo que ela guardava. Porém, se sua amizade somente crescia, por outro lado, ela parecia incapaz de se sensibilizar a seu amor. Por anos a fio, o jovem envelhecia, entre idas e vindas de sua amada. Muito tempo lhe custou acostumar-se à idéia de não tê-la jamais para si. Ela não era sequer como um pássaro que canta em sua janela, para alegrá-lo, e parte em seguida. Um pássaro pode ser capturado. Ela era como um sol que iluminava a sua vida, e depois partia, deixando tudo em total escuridão. Ele não poderia, jamais, conquistá-la.

    Michelle sentiu grande pesar, pois sabia que realmente não voltaria a ver seu grande amigo. Mas, mesmo tendo perdido o apetite, forçou-se a comer bem. Não podia fazer uma desfeita justamente no último dia em que se veriam, nem poderia deixar de se alimentar bem antes da longa viagem que os aguardava.

     Terminado o silencioso jantar, o Sr. Stern entregou-lhes dois passaportes, um pouco amarrotados. Pareciam ter sido usados por anos. Emílio não pôde conter o espanto ao perceber que os documentos eram seu e de Eva. Precisamente, do senhor e da senhora Dubois.

     - Como assim, Jean-Pierre Dubois? Eu não falo uma só palavra em francês! E como ele conseguiu a minha foto?
     - Você pergunta demais, rapaz. Eu peguei na sua casa, enquanto você tomava banho. Sabia que precisaria para alguma coisa, um dia. E não se preocupe. Você não vai precisar dizer uma só palavra. Faça-se de surdo, e eu resolvo o resto por você. Vamos?
     - E para que isso? Um brasileiro não viaja à França?
     - Você tem visto de turista? De estudante? Não. Émille Martin Dubois, dois dos três sobrenomes mais comuns na França, ninguém vai reparar em você. E seu biotipo e essa cara pálida ajudam um bocado.

     Eva despediu-se pela última vez de seu amigo. O abraço foi demorado, e teria sido mais, se não fosse o tempo a avançar impiedosamente a despeito deles. Não poderiam perder o avião. Michelle havia conseguido armar uma viagem realmente complexa, para que, com todas as pontes aéreas, eles estivessem sempre à noite. Dariam a volta ao mundo, entre uma e outra parada, trocariam de avião inúmeras vezes, e desembarcariam quase um dia depois do início da viagem, em Paris. Seria uma viagem longa e cansativa. Mas seria perfeita, e era uma oportunidade que não teriam tão cedo. Além disso, Emílio ainda tinha a face um tanto deformada, pelas queimaduras, mas as bolhas já haviam se desfeito. Seus braços e os de Michelle, também. A dilatada duração da viagem seria positiva porque, até que pisassem em solo francês, já estariam quase normais.

     Então, Emílio agradeceu pela hospedagem, e por todos os cuidados. Prometeu, embora sem certeza, que voltaria, e que daria um jeito de retribuir o favor. Entraram em um táxi, e partiram para o aeroporto.


     Após um trânsito infernal, que já esperavam ter de enfrentar, chegaram ao aeroporto. Michelle já tinha em mãos as passagens, e a espera rotineira, que sempre antecede as viagens de avião, terminou antecipadamente. Circunstâncias extraordinárias tornavam necessário adiar ou cancelar o vôo, ou mesmo antecipá-lo, aproveitando a brecha de um plano de vôo já cancelado. Esta idéia que foi colocada como opção para os passageiros, que estavam já todos presentes, e estes concordaram prontamente. Não demoraram a entrar no avião.

     O piloto já se apresentava, quando, repentinamente, como ocorresse um erro, começou a tocar, no avião,  em volume bastante alto, uma belíssima canção dos Beatles. "Michelle, ma belle / These are words that go together well, / My Michelle...". Desconcertado, o capitão e a tripulação tentou resolver o problema, sem muito sucesso. Alguns passageiros acharam graça, outros, não tão bem humorados, resmungaram algumas queixas sobre a evidente desorganização, ou mesmo a eventual incompetência da tripulação. Tão inesperado quanto começou, a música foi interrompida. Para a tripulação, um alívio. Para os passageiros, de modo geral, o fim de uma piada. Para Michelle, uma mensagem. A última frase cantada no rádio foi "I will say the only words I know that you'll understand", "Eu direi apenas as palavras que sei que você entenderá". Era como um sinal, uma senha antiga, que ela já usara no passado, para avisar que ficasse atenta a sinais. Mas, ela não usava aquela senha havia anos, e nunca de forma tão ousada. E ninguém mais sabia que ela estaria ali. Ou não deviam saber, pelo menos. Quem ainda os seguia tão de perto?

     Em poucas horas, a primeira parada. Michelle e Emílio - o casal Dubois, para todos os efeitos - tiveram que se separar dos demais passageiros, para tomar um outro avião. Foram indicados para um vôo que sairia imediatamente, sequer tendo tempo para esticar as pernas.

     Pegaram o novo avião. Após todo o procedimento de praxe, levantaram vôo. Eva não conseguia entender. Nenhuma mensagem lhe chegara, ainda. Àquela altura dos acontecimentos, já deveria tê-las recebido. Teria sido coincidência? Ou será que ela deixara passar algo importante? Aquele mistério lhe incomodava sobremaneira, enquanto Emílio dormia tranquilamente, ao seu lado. Incomodava-lhe tanto, que ela terminou não sentindo o tempo passar. Em poucas horas, o avião aterrissava em solo recifense, realizando uma inconveniente guinada na viagem, e prejudicando gravemente todos os seus planos.

     Foi assim, por acidente, que o suposto casal Dubois desembarcou em Recife, e teve sua viagem interrompida. Constatado o engano, não mais se podia fazer algo, imediatamente, sem correr o risco de ver nascer o Sol. E o dinheiro minguara. Estavam, novamente, prisioneiros da sorte.


     O Aeroporto Internacional dos Guararapes, modernamente belo, foi obscurecido aos seus olhos, diante do impasse. Mas, muito em breve, tudo se explicaria.

     - Walia?! - Espantou-se Michelle ao ver, diante de si um senhor forte, bem aparentado.
     - Quem? - Estranhou Emílio o espanto de Michelle.

     O senhor, que os aguardava com os olhos fixos na abatida Michelle, era uma figura imponente. Tinha a barba crescida, cor de creme, vistosa e bem cuidada. Creme, também, era a cor de seus cabelos, com grossas tranças por detrás de si, e guardados sob uma discreta boina, que remetia a paisagens francesas. Aparentava ter seus cinqüenta e tantos anos. Mas, Emílio já percebera, não se podia fiar nas aparências, quando, possivelmente, se trata de um vampiro. Não demorou até que aquele senhor imponente e quase majestoso se dirigisse a Michelle, em um idioma que a Emílio pareceu completamente estranho. Para Eva, que finalmente, após o choque, reassumiu o caráter de agente, o idioma não era tão desconhecido. O teor do diálogo, enquanto caminhavam, foi algo semelhante a isto:

     - Você solicitou a sua audiência particular e não compareceu, quando chamada. Optou por fugir, como se lhe quiséssemos algum mal.
     - Alguém nos quer mal, sim, Grande Líder! E acreditei que este alguém nos teria enviado o recado que, porventura, era vosso. Como poderia eu confiar?
     - Pois, para sua sorte, estávamos monitorando vocês. Gabriel nos foi de grande ajuda, nisso também.
     - Não devíamos ir a um lugar mais reservado? - sugeriu Eva, quando viu que entravam na praça de alimentação - Chamamos muita atenção, aqui.
     - Um aeroporto internacional é um local apropriado, para se conversar em qualquer idioma. Ninguém estranha. Também, se alguém aqui for capaz de compreender um idioma escandinavo arcaico, certamente já conhece os segredos que pretendemos esconder. Mas, explique-me o que faziam. Parece-me que tinham planos de ir à França. Paris?
     Dizendo isto, sentavam-se à mesa. Emílio ouvia a tudo, atentamente, embora sem entender uma só palavra.
     - Como eu vos disse, Senhor, cheguei à conclusão de que não poderia confiar em Gabriel, vosso mensageiro, pois o abrigo a que ele nos enviou, em São Paulo, estava repleto de armadilhas. Como pode compreender, - e Eva exibia suas queimaduras, e as de Emilio - chegamos a nos ferir, e corremos mesmo o risco de morrer. Resolvi, portanto, que seria a nossa melhor solução ir ter pessoalmente com o senhor, na sede da Ordem, em Paris.
     - Realmente, me foi reportado a sede brasileira das reuniões do Grande Conselho foi incendiada e destruída, e o nosso esconderijo em São Paulo foi encontrado repleto de armadilhas. Como você é vítima, portanto diretamente interessada neste assunto, e dado que é de total confiança, tenho de informá-la de que foi secretamente aberta uma investigação para averiguar quem entre nós é o traidor.
     - Será possível que haja um traidor dentro do Grande Conselho da Ordem?
     - Tudo é possível, minha cara.

     A conversa seguiu seu rumo, em tom cada vez menos formal. Walia era o vampiro mais antigo de que se tinha notícia, e Michelle também estava entre os de maior idade. Logo, se conheciam muito bem, e tinham bastante intimidade, para não se prenderem tanto a formalidades. Então, questionada sobre a sobrevivência de Emílio, contou-lhe o que ocorrera, passo a passo, e suas teorias a respeito. O senhor não pôde conter um certo olhar de reprovação, pela conduta libertina de Eva, que, segundo ele avaliava, foi tomada pelo impulso da paixão e desobedecera à Ordem, mantendo a vida de um novo vampiro, completamente descontrolado. Ainda assim, ele prometeu interceder por ela. Ora, se por ela intercedia o Grande Líder, ela podia respirar aliviada. Somente, então, foram apresentados Walia e Emílio. E, novamente, sem que Emílio pudesse compreender em que idioma falavam, ela pediu, formalmente, autorização para apadrinhar Emílio na sua eventual entrada para a Ordem. Declarando que Emílio já fora, em tudo de sua vida, investigado, Walia se prontificou a agilizar a iniciação.

     Quando, mais tarde, Michelle esclareceu a Emílio o conteúdo da conversa, ele ficou muito feliz em ver que tanta coisa teria sido esclarecida. Muito animado ficou, também, por saber da investigação. Mas, não pôde negar, era capaz de perceber o tamanho do privilégio que era estar frente-a-frente com o Grande Líder. Já começava a compreender que o Grande Conselho era um órgão dirigente da tal Ordem. O Grande Líder, no entanto, como ele começava a ver, embora não tomasse decisões por conta própria, seguia sendo alguma espécie de autoridade máxima, algo como uma verdadeira baliza para a atuação do Grande Conselho. E nisso Emílio não se enganou, posto que era exatamente essa a principal atuação do Grande Líder.

     Do aeroporto, custeados pelo Grande Líder, e por este restituídos os seus novos verdadeiros documentos  - vampiros têm documentos verdadeiros, e identidades legais renovadas de tempos em tempos -, seguiram para um hotel de luxo, cinco estrelas, em Boa Viagem. Lá, passariam o dia que iniciava, e, de lá, Eva sairia com uma nova missão: conquistar o reconhecimento de Emílio na Grande Ordem.

sábado, 13 de março de 2010

Capítulo IX – Jogo de Gato e Rato

     Preocupados, Michelle e Emílio sentaram-se à mesa. Adão retomou aquela aparência clássica, imóvel, que sempre tivera para Emílio. Permanecia calado e sério, em pé, inequivocamente concentrado, e certamente fechado em seu universo particular.

     Não poderiam sair antes do cair da noite. Bem, se eram reféns, era certo que alguém planejava qualquer coisa contra eles, e esse alguém planejara tudo em seus mínimos detalhes, segundo lhes pareceu. Por outro lado, sabiam que, se sobrevivessem até a noite, poderiam fugir, e buscar a ajuda direta do Conselho.

     As horas passam, quietas e mórbidas como antigos edifícios abandonados, e a tensão somente aumenta. Tudo permanece inalterado. Emílio ainda sente uma sede insuportável, que não poderia ser saciada por água alguma. E fome, também. Mas não há nada na despensa. No lugar da comida, uma gaiola sem portas, completamente fechada, com um enorme rato, dentro; fora, a seguinte mensagem:

“Caro Emílio,
Sente fome? Ou, seria sede? Delicie-se com esta delicada iguaria, por enquanto. Mais tarde, poderá sair desta casa, e experimentar a Vida que Lionel lhe deu. Você é livre, Emílio, jamais precisará submeter-se à Ordem, se não o quiser! Mas, lembre-se: no jogo de gato e rato, às vezes se é o gato, outras vezes, não…”


     Como assim? Sabiam que ele estaria ali, o que, até certo ponto, não era novidade. Mas sabiam que tinha sede. Mesmo o relatório de Michelle apenas revelara sobre a morte de Adam. Nada havia sido dito a ninguém sobre seu ataque, ou sua sede. E, havia uma dúvida, mais: a que “Ordem” não precisaria se submeter?

     Eva e Adão se entreolharam, por um instante, e compreenderam um ao outro. Mas não concordavam entre si. Eva estava decidida a esclarecer a Emílio sobre a Ordem. Afinal, ele já conhecia o Grande Conselho, de um lado, e a Acção, do outro. Adão achava que ele sabia o que o sabia por permissão do Grande Conselho, e ainda assim sabia demais. Não era seguro que soubesse mais, agora. Mas, ambos compreenderam rapidamente que o intento deste recado era confundir a cabeça de Emílio. E havia funcionado.

     Antes que pudessem reagir, Emílio já havia  rompido a gaiola, e, dominada sua repulsa, havia abocanhado com vontade o enorme roedor.

     - Não, Emílio! Não!
     O rato se debatia, mas Emílio o segurava com as duas mãos. Aplicava-lhe mais força do que o necessário, a ponto de quebrar-lhe alguns de seus pequenos ossos. Com uma voracidade incrível, Emílio logo lhe havia sorvido todo o sangue.
     - Não dá nem para o começo! – queixou-se Emílio.
     - É claro que não, Emílio! Não vê que isto foi feito com o firme propósito de deixá-lo sem controle?

     De fato, ele estava completamente descontrolado. Agitado, ansioso, irritado. Emílio olhava em torno, e não compreendia como ou porque os demais não sentiam, também, a falta que ele sentia de sangue. Talvez, por isso, eles não o compreendessem.

     Percebendo que ele começava a sair de si, prevendo que Emílio surtaria, Adão precipitou-se inutilmente contra ele. Inutilmente, porque, antes que lhe pudesse alcançar, Emílio já havia estourado violentamente em direção a uma grande janela, a poucos metros da despensa.

     Como numa explosão de luz, uma luminosidade insuportável tomou o ambiente, arremessando Emílio para trás. Sim, ele conseguira abrir a pesada janela. O susto que o arremessou para trás fez com que caísse pesadamente, a cabeça contra o chão. Sua visão se apagou imediatamente após o clarão, e os sons em torno dele, cada vez mais distantes, desapareceram.


     - O que houve?
     Emílio acordou atordoado, a visão turva, os braços e a face a lhe doerem imensamente. Doíam-lhe com insuportável intensidade até os ossos.
     - Você teve um surto, Emílio. Abriu a janela.
     Assustado, Emílio levantou-se. Começava a lembrar. Olhou para os braços, e viu, com dificuldade, que estavam tomados de bolhas.
     - Tivemos sorte. – retomou Michelle – A luz que incidiu sobre nós não poderia ser tão intensa. Esta janela é direcionada para o oriente, e já passava consideravelmente do meio-dia, quando você a abriu. Não pude ver com atenção, mas tenho a impressão de que alguém colocou espelhos, ou algum metal, estrategicamente, para que a luz incidisse sobre a janela, e a radiação solar se concentrasse sobre nós. Teríamos morrido, se eu não tivesse conseguido fechar a janela.
     - Eu nos joguei contra a armadilha.
     - Sim, você acionou a ratoeira.

     Claro. A mensagem. Eles eram os ratos. Romper a gaiola não era liberdade, mas entregar-se ao predador. Permanecer na casa, então, era a segurança deles. Michelle parecia concordar com o que ele pensava.
     - Você lê pensamentos?
     - Não, ninguém faz isso.
     - Como parece compreender o que eu penso?
     - O corpo fala. a linguagem corporal, o olhar… Tudo denuncia, sem palavras, muito do que você pensa, sem que você perceba.
     - Mas, não tanto assim.
     - Com o passar de décadas, e os sentidos apurados de vampiro, você vai entender o que lhe digo. Dedique-se um pouco mais, e perceberá.

     Um breve silêncio se fez ouvir. Mas, Emílio percebeu que havia algo de errado.
     - Onde está Adão?
     - Pedi que ele se ausentasse, para que não brigasse com você.
     Só então, Emílio percebeu que Eva também estava bastante queimada, e seus braços também estavam tomados por bolhas.
     - Você também se queimou... E ele, está bem?
     - Ele teve sorte. Ao tentar segurar você, ele caiu no chão, e isso o retirou da incidência direta da radiação. Ele está apenas despelando um pouco, e estará como novo até o fim do dia.

     Emílio começava a lembrar mais detalhadamente da cena.
     - Eu só faço besteira, não é?
     - Não, mon amour, você não tem culpa. É por isso, que o Conselho somente admite a transformação de novatos quando membros os apadrinham. O padrinho é sempre um vampiro que seja experiente o bastante, e somente ele pode transformar o novato em vampiro, pois, assim, será capaz de exercer uma grande influência, ou até controle, sobre o novato, nestes momentos difíceis. Você não tem este outro lado da ponte, mon amour. Ninguém pode ajudá-lo, e ninguém pode culpá-lo.
     - Adão não parece pensar assim.
     - Ele está de cabeça quente. E tem as suas razões, para tal. Mas, não há de ficar sempre assim.

     Mon amour. Ela repetira esta expressão mais duas vezes. Ele enchia o peito de orgulho e felicidade, por saber que ela também o amava. Mas a dor ainda o incomodava muito, para que se permitisse algum ânimo.
     - Por que não nos regeneramos?
     - As queimaduras do sol?
     - Sim.
     - Nós não temos mais sangue. O fluido que temos em seu lugar ajuda a recuperar feridas mais rapidamente, mas não consegue lidar muito bem com queimaduras. Como nosso organismo já quase não suporta a radiação solar, nos queimamos fortemente. Demoraremos alguns dias para nos curarmos.
     - Me desculpe!
     - Pelo que?
     - Em última instância, fui eu quem queimou você...
     - Já disse que não foi culpa sua.

     Michelle começou a cuidar do rosto de Emílio, que também doía. Foi quando ele se deu conta de que também tinha bolhas no rosto. Devia estar parecendo um monstro. Dos males, o menor: ela somente queimara os braços.

     Adão retornou, sério. Na verdade, carrancudo. Sua expressão era ainda mais insondável do que de costume. Emílio tentou iniciar um diálogo, mas aquele olhar furioso de guerreiro nórdico o intimidou. Adão parecia, também, reprovar Michelle, por apoiar Emílio, e por estar de seu lado. Passaram o resto do dia neste clima desagradável, até o anoitecer.


     Quando a escuridão começava a tomar o céu, Eva saiu, na frente. Não havia passagens secretas saindo diretamente da casa, mas havia uma boa rota de fuga do lado de fora. Por isso, saiu com o objetivo de checar a segurança de sua fuga. Chamou os rapazes, e mostrou enormes espelhos côncavos, voltados para as janelas da casa, de modo a garantir altíssima intensidade de luz e radiação solares contra a casa, durante quase todo o dia. Algumas janelas pareciam, até, já estar levemente queimadas, somente resistindo devido à grossa camada de tinta, ou, talvez, à boa qualidade da madeira.

     Quem armara seu cativeiro não estava de brincadeira, pensaram. Não facilitaria a sua fuga. Aliás, fugir, até então, estava parecendo uma tarefa muito fácil. Havia algo de errado. Sim, ela tinha certeza, havia algo de errado. Eva congelou imediatamente. Emílio quase esbarrou nela, e iria perguntar algo sobre a parada brusca, pelo que ela fez um sinal: "quieto!", parecia ela dizer. Adão olhou para Eva, e ambos se abaixaram, puxando imediatamente Emílio para dentro do mato. Suas peles já começavam a esquentar e arder, como estivessem em uma sauna.

     Mesmo após fugirem para o mato, persistia a sensação de ardência em suas peles. Correram para o mais distante possível. Emílio não entendeu nada. Que diabos poderia estar havendo?
     - Deram-se ao trabalho de construir dezenas de refletores de radiação ultra-violeta.
     - Como? - espantou-se Emílio.
     - Uma pessoa comum poderia estar no quintal daquela casa, em trajes de banho, nesta noite, e sairia de lá com o bronze muitíssimo bem definido. Construíram uma grande câmara de bronzeamento artificial, naquele quintal. - Explicou Eva - Felizmente, a distância entre nós e os refletores permitiu que fugíssemos, sem maiores danos às nossas peles.
     - Mas, se não era suficiente para nos fazer realmente mal, por que se deram a tanto trabalho?
     - Talvez, esperassem que não fôssemos perceber. Ou não. Não são tão ingênuos assim...
     - Um aviso, talvez?
     - É, pode ser... Ou esperavam que dispersássemos...
     - Mas, quem pode ter este interesse? E por que?

     Emílio tinha os nervos à flor da pele. Perdeu finalmente o controle, gritando a plenos pulmões:
     - Por que não vem nos pegar? Vamos, apareça! Eu sou divertido?! Apareça! - Eva tentava contê-lo - Não, agora, eles têm que me ouvir. Vamos! Vai ser assim? O gato tem que brincar com a comida, não é? Pois você já brincou, venha me pegar!

     Adão não se deu ao trabalho de esperar que Emílio se calasse. Não era obrigado a se arriscar mais por quem não tinha a mínima consideração por seus esforços de sobrevivência. Saiu em disparada, deixando os dois sozinhos.


     Emílio e Eva aguardaram o melhor momento, e seguiram rumo à saída da mata. Não deveriam aparecer em público, pois chamariam muita atenção para si. Este raciocínio fez Emílio ter uma epifania. Suas queimaduras eram uma marca, uma identificação. Eles eram seguidos por alguém, passo a passo, ele tinha certeza disso. Mas, por que ninguém fazia nada?

     Repentinamente, sem que eles esperassem, Gabriel lhes apareceu, como se caído do céu. Entregou-lhes uma grande quantia em dinheiro, e um endereço, que dizia ser seu próximo abrigo, e de onde teriam contato direto com o Grande Conselho. Disse-lhes também que Adão já estaria lá, e seria levado de volta a Oslo, onde tiraria férias. Eles deveriam ser enviados para a França, para que Eva tivesse sua audiência com o Grande Líder. Pegaram o dinheiro, mas sua confiança não foi suficiente para que seguissem ao endereço indicado.

     Eva levou Emílio a uma casa muito simples, onde havia um senhor bastante distinto. Entraram.
     - Hallo, Her Stern!
     - Salut, madame! - sorriu - Pode falar em português, senhorita. Não vai querer que o jovem pense que escondemos algo dele.

     Como ele sabia que Emílio era brasileiro?

     - Então, Stern, serei direta com o senhor. Preciso de passaportes urgentemente.
     - Para quando?
     - Sairemos do Brasil no próximo vôo noturno que conseguirmos.
     - E têm onde ficar, até lá?
     - O senhor tem alguma indicação segura?
     - Podem ficar aqui, até a próxima noite. Depois, sei que não precisarão mais de mim.

     O olhar daquele simpático senhor despertava bastante confiança em Emílio. Michelle cochichou que seu nome era Katze, e significava "gato", em alemão. Emílio riu da ironia, mas não pôde evitar um arrepio na espinha. Já estava prestes a amanhecer, quando se estabeleceram no único quarto da pequena casa, e o Sr. Katze saía para seguir sua rotina diária.

Pablo de Araújo Gomes

sábado, 6 de março de 2010

Capítulo VIII - Um Bilhete Misterioso

     O silêncio no abrigo era consternador. Adão, sempre tão impassível, habituado a aparentar indiferença a tudo, já não parecia tão diferente de qualquer mortal. E não era capaz de conter o espanto, talvez até reverência, quando dirigia o olhar a Emílio. Michelle, embora mantivesse uma postura séria e respeitosa diante de Adão, mais parecia uma adolescente apaixonada, a cochichar segredos nos ouvidos de Emílio. Este, por sua vez, parecia ter consumido qualquer substância estimulante. Estava elétrico, impaciente, tinha uma energia sobrehumana a lhe rasgar o corpo. E sentia muita sede, uma sede que jamais sonhara sentir com tamanha intensidade. Uma fatal sede de sangue.

     Michelle continuava a tentar acalmá-lo, mas seu controle sobre o jovem rapaz não era pleno. Adão assistia a tudo atônito. Assim se passou todo o dia, até que chegasse a noite.

     Quando o sol se punha, saíram em disparada, pela noite. Não arriscariam adentrar na cidade, ou qualquer aglomeração urbana. Seria estupidez. Sabiam que eram esperados em qualquer das pequenas cidades vizinhas, inclusive nas poucas e minúsculas vilas rurais dos arredores. Todos os caçadores haviam sido alocados para aquela região. Evitaram, então, qualquer trilha ou estrada, que já não eram muitas naquela região, e seguiram caminhando a passos extremamente rápidos. O caminho era silencioso, e nada mais acontecia. O silêncio só era quebrado pelo ruído de seus passos acelerados, e pelo próprio som da noite.

     Andando por horas, em silêncio, tiveram a sensação de eternidade. A cada segundo, a tensão aumentava, juntamente com o medo de serem descobertos. Em cada cabeça, pululavam dúvidas. Em cada mente, mil e uma informações desencontradas. Somente Eva parecia compreender algo do que lhes ocorria, mas seu ar atento e solene afugentava qualquer impulso de questionamento. A sensação de eternidade, no entanto, não passava de uma ilusão. Não demorou para perceberem que o sol queria raiar.

     - Já vai amanhecer? Que horas... que dia é hoje? - perguntou Emílio, atordoado.

     Adão parecia se divertir com a confusão de Emílio. Pelo menos, permitiu-se um sorriso de canto de boca. Eva não estava tão à vontade, pois ainda não encontrara o esperado abrigo. A instrução de seu superior havia sido a de seguir rumo ao leste, ininterruptamente, em ritmo bastante acelerado. Ela havia cumprido à risca, mas nada lhe aparecia. Quando já amaldiçoava a sorte, deparou-se com uma pequena pousada.

     Na recepção, perguntaram onde estavam, exatamente. Sequer compreenderam o nome da região. Jamais haviam ouvido falar em nada semelhante. Mas, nada lhes pareceu extraordinário, pelo menos até consultarem o mapa extendido na parede da recepção. Não poderiam acreditar no que viam. Sua caminhada frenética os levara a avançar quase 150 quilômetros. Feitas as contas, significa que sua velocidade média ultrapassara, tranqüilamente, os 13 km/h, em uma caminhada ininterrupta por terrenos acidentados, cheios de declives e obstáculos. Mesmo muitos atletas de ponta não atingiriam esta velocidade, em tal percurso, ou não chegariam ao fim nestas condições. Haviam caminhado por mais de onze horas, aproveitando o período em que o sol se ausentara da abóbada celeste. Nem mesmo Eva, com mais de mil anos de vida, havia realizado tal esforço. Suspensa a atividade física, sentiam o metabolismo declinar, e começavam a perceber o insuportável peso de suas pernas. Eram puro cansaço. A melhor notícia, no entanto, é que haviam ultrapassado consideravelmente o perímetro de risco, sem sequer desconfiar. Possivelmente, este era o plano de seus superiores.

     Ao pedirem os quartos, descobriram que já estava tudo arranjado. Havia dois quartos simples de solteiros reservados. Os únicos quartos de solteiro da minúscula pousada. Também os aguardava um senhor de nome Gabriel, na melhor suíte da pousada, e que queria vê-los logo que se acomodassem.

     Eva não perdeu tempo, e foi direto para o quarto. Gabriel era um mensageiro, um mercenário contratado para ser o contato deles com o conselho. Ela reportou o sucesso da missão, e a "inevitável neutralização" de Adam Bowie durante a fuga. Quis ocultar, pelo menos por enquanto, a sobrevivência de Emílio, mas a presença física dele seria um claro empecilho. Solicitou, no entanto, uma audiência direta e pessoal com o grande líder, para revelar em detalhes confidenciais o que havia acontecido. A sobrevida de Emílio levantou dúvidas quanto ao sucesso da missão, mas a Srta. Michelle Delacroix tinha um bom crédito: em séculos de atividade como agente, Eva jamais falhara.

     Os seguintes procedimentos foram traçados. A comunidade possuía meios para executar planos ousados, cuja execução aconteceria sob o comando de Gabriel. Alguém não vampirizado, fazendo-se de turista, ficaria encarregado de induzir algum cidadão local a entrar na mata, e encontrar os restos mortais do presidente da Acção. Àquela altura, certamente, já haviam sido dilacerados por uma onça, ou qualquer dos predadores comuns naquela região. Os espiões infiltrados na Acção deveriam acompanhar, dentro desta organização, quais os efeitos e as reações da morte de seu líder. E, muito importante, um veículo já estaria a caminho para tirar os três vampiros dali em segurança.

     Gabriel, embora pouco entusiasmado, cedeu a suíte para o casal. Adão já caíra no sono, e os demais não demoraram a fazê-lo, exaustos que estavam.


     Começava a anoitecer, quando todos acordaram. Gabriel havia desaparecido sem deixar qualquer rastro, além das diárias pagas. E o transporte prometido os aguardava do lado de fora. Era um carro estranho, de modelo desconhecido. O estranho veículo tinha tração nas quatro enormes rodas que possuía, e firmeza digna de um tanque de guerra, mas era muito pequeno, chegando a ser apertado para os três. Também possuía a cabine de motorista isolada, e janelas absolutamente negras, para garantir a proteção dos vampiros contra a luz solar, como eram todos os carros do Conselho.

     Durante a viagem de volta, tornou-se claro o porque de usarem um carro tão peculiar. Havia de ser um carro personalizado, feito especificamente para andar por entre as estreitas trilhas, naquelas terras ermas e alagadiças. Chegaram a atravessar alguns riachos mais rasos, em meio ao terreno extremamente acidentado. Mesmo à noite, o calor era insuportável, mas Emílio não pôde deixar de perceber, com satisfação, que não gerava interesse nos incômodos mosquitos, que pareciam vir de toda a parte.

     Emílio também pôde notar que era capaz de ouvir qualquer movimentação no meio da mata, no meio da noite. Foi capaz de, sem muito esforço, identificar a distância dos sons que fazia a noite, e identificar formas e tamanho dos animais noturnos em um raio de algumas dezenas de metros.

     - Nunca imaginei que a floresta fosse tão viva, à noite.
     - Você teve esta oportunidade, ontem.
     - Ontem, eu só conseguia ouvir bem os meus próprios pensamentos. - respondeu, distante, Emílio.

     Antes, ainda, que amanhecesse, chegaram a uma cidade de porte um pouco maior, onde migraram para um outro carro, mais confortável e espaçoso, e de onde seguiram por rodovias. As rodovias estavam em péssimas condições, mas o balanço do carro não chegava a ser tão intenso quanto no meio da floresta. Não mais suportando o mistério, Adão se dirigiu a Eva.

     - O que houve, exatamente, para que Emílio pudesse sobreviver?
     - Eu tenho uma teoria. Jamais obtive autorização do conselho, para testá-la, e continuo não tendo tal autorização. - segundos de silêncio - Mas as circunstâncias me fizeram ignorar o conselho. A nossa saliva... A substância que nos ajuda a sugar o sangue, por ser anticoagulante, parece ter outras propriedades ainda desconhecidas. Parece-me que, quando removemos a alma, o corpo precisa se apegar a algo, para sobreviver. Talvez, ao introduzirmos algo de nós em quem mordemos, criemos uma ponte entre nós e este alguém. Se sobrar algum sangue, e o humano vitimado sobreviver ao ataque, logo será transformado em vampiro.
     - É isso que explica a dependência? - Emílio indaga, curioso.
     - Segundo a minha teoria, sim. Enquanto houver esta ponte, e as duas extremidades por ela ligadas, o novo vampiro poderá sobreviver.
     - E, assim, deixamos de se humanos...
     - Jamais deixamos de ser humanos, Emílio. Nosso organismo sofre algumas modificações, nosso metabolismo é alterado, mas, em essência, continuamos humanos. Temos sentimentos, desejos, habilidades e uma infinidade de instintos, mais afiados do que nunca. Nunca, antes, fomos tão homo sapiens, em nossas vidas.
     - Vendo por este ponto de vista, faz bastante sentido. E por que não passa esta vontade insuportável de beber sangue?

     Adão chegou a dar um pequeno sorriso. Antes que Emílio pudesse percebê-lo, no entanto, Michelle o censurou. Sabia que ele se divertia com esta dificuldade de Emílio, como quem vê um amigo ficar completamente bêbado pela primeira vez. Não era correto divertir-se com isto.

     - Vamos colocar da seguinte maneira - disse o próprio Adão, contendo o riso - Até experimentar o sexo, você tem bastante curiosidade. Depois que prova como é bom, não lhe sai da cabeça o desejo de reviver a sensação, e torna-se praticamente insuportável a idéia de ficar sem. Agora, multiplique por mil, e entenderá o que está sentindo...

     Michelle riu-se por dentro, pela explicação. Era uma brincadeira comum, entre vampiros homens, fazer esta comparação para explicar a novatos, mas isto não fazia da comparação algo menos ridículo. De qualquer forma, funcionava. Emílio pareceu compreender imediatamente o que queria dizer.

     Como desse um laço, Michelle envolveu Emílio em um abraço apertado, fazendo-o aninhar-se em seu colo. Tentou induzir seu sono, mas não conseguiu. Emílio não era tão controlável como se poderia esperar. Pensou na ponte. Talvez, fosse mais como uma corda, que impede a queda no precipício, e todo o processo que lhe garantira a vida tenha possibilitado que ele tivesse alguma independência. Talvez, a corda que o ligara a Lionel ainda o ligasse a algo, ou o sangue que bebera o estivesse ajudando a agarrar-se a alguma pedra. O fato é que ela, Michelle, lhe garantira a sobrevivência, mas a influência que ela lhe exercia era muito limitada.


     Passavam-se horas, em que conversavam trivialidades, ou, pior, não falavam nada. Era comum o sono apertar, mas ninguém aguentava mais dormir. Alguns lanches frios já os aguardavam no carro e não demoraram muito a ser consumidos. Então, logo que voltou a anoitecer, fizeram uma pausa para o lanche.

     Na pequena lanchonete, Emílio chamou a atenção da bela e jovem garçonete.
     - O que ela tanto olha em você, Emílio?
     - Talvez, ela me ache bonito, não sei...

     Na verdade, sem saber, Emílio a seduzia. Ao notar, Michelle indignou-se.

     - Emílio, você não vai mordê-la! - cochichou em seu ouvido.

     Emílio não era capaz de acreditar. Que incrível capacidade de percepção, a de Michelle, ao perceber um pensamento seu, que ele mesmo, até então, não havia notado. Ele sentia dentro de si que já havia arquitetado um plano, e não se sentia capaz de se conter. Precisava realizá-lo. Precisava beber um pouco, saciar-se. Não suportava, realmente, a idéia de não beber o sangue daquela jovem tão atraente.

     Já Michelle, atenta, tinha outras preocupações. A primeira: Emílio precisaria se conter, se desejasse ser acolhido, em vez de definitivamente degredado da comunidade. A segunda preocupação deveria ser menos grave, mas não a incomodava menos. Por que, de tantas vítimas possíveis, que passavam para um lado e outro, ele havia escolhido justo uma garota? E por que uma garota tão bela? Michelle teve que conter uma fúria enorme dentro de si, para não fazer uma cena de ciúmes. Ela não sentia nada semelhante havia mais de mil anos, quando uma cortesã se insinuou para o seu noivo, às vésperas do casamento. Notar o que sentia também não ajudou muito. Ela respirava fundo, com o intuito de relaxar, mas sentia o cheiro de fertilidade da jovem invadir suas narinas. Aquilo, talvez, estivesse sendo sentido por Emílio, também. Como agir de forma sutil?

     E a jovem seguia com sorrisos e atenções para Emílio, quase ignorando os demais da mesa. Limitava-se a receber seus pedidos, e trazê-los com prestreza. Mas falava com eles, e a eles se dirigia, sem tirar os olhos de Emílio, que parecia corresponder cada olhar.

     Sob a acirrada vigilância de Michelle, no entanto, Emílio não pôde pôr seu plano em curso. Sem quase comer nada, ambos optaram por pedir que a comida fosse embalada para viagem. Sensível ao clima que tomava o ambiente, Adão também fez o mesmo, apesar da fome. O alívio foi grande, quando entraram no carro. Ou não. Michelle percebeu que não iria poder descuidar de Emílio, por um bom tempo. E Emílio não conseguia parar de pensar na chance que perdera de saborear um pouco de sangue. Por muito tempo, ainda, seguraram, imóveis, seus grandes sanduíches, e suas caixas de suco.

     Após alguns dias de longa jornada, finalmente, estavam em São Paulo. Não no centro, não na cidade, mas em uma área bastante verde, nos entornos da região metropolitana. O carro entrou em uma garagem semelhante à da sede do conselho, mas menor. Michelle explicou a Emílio que aquela era uma das casas que já usara em missões, décadas atrás. Lá, recobrariam as energias nos próximos dias.

     Subiram as escadarias, e já estavam dentro de uma casa simples, mas bastante aconchegante. Sobre a mesa, um envelope, em que se lia: "à Srta. Michelle Delacroix". Ela o abriu, e encontrou um bilhete datado daquele mesmo dia, em que se lia um poema.

     Ela ficou desconcertada. A primeira sensação foi da mulher lisongeada, a segunda foi a da mulher invadida. Finalmente, ela se deu conta de que poucos sabiam que ela estaria lá, e estes poucos eram os membros da cúpula do Grande Conselho. Nenhum deles jamais lhe enviaria um bilhete anônimo. Emílio, ao ler, quedou-se incapaz de se conter, tamanhos eram seus ciúmes. Adão gargalhou pela primeira vez em anos, com sua potente voz, o que lhes deu a impressão de que trovejava no céu. Mas a situação era séria. Havia anos que ela não entrava ali. O bilhete era anônimo. Quem mais saberia que eles estavam ali? Esta preocupação logo assumiu caráter de urgência. Eram nove horas da manhã, os telefones não davam linha, o computador não funcionava. O carro não mais se encontrava na garagem. Estavam presos e incomunicáveis. O que lhes aguardava?


Pablo de Araújo Gomes

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Capítulo VII - Morte Anunciada

  A casa foi evacuada. O silêncio era de morte, e aquele edifício tão nobre, mas completamente desocupado começava a parecer uma enorme cripta, de tão fúnebre. A grande ironia ficava por conta do som ambiente. Enquanto eles se preparavam para a morte, o ar era tomado pelo Requiém em Ré menor, inadvertidamente composto por Mozart para o próprio funeral. Ao olhar para Eva, Emílio teve certeza de que queria viver. Queria estar com ela. Nunca, antes, ele desejara qualquer coisa com tamanha intensidade.

  Eva, percebendo isto, pareceu compadecer-se pelo sofrimento do rapaz. Mas nada disse. Enquanto a Srta. Delacroix era Eva, era uma oficial a serviço. Não lhe cabia qualquer fraqueza humana. No comando da operação, ela dispensou Adão de vigiar Emílio. Encarregou-lhe, no entanto, de manter plena vigilância sobre o Sr. Lionel Giardini, que, pensativo, não parava de confabular algum meio de escapar.

  A Lionel, pouco lhe importava se poderia provocar uma guerra. Ele morreria de uma forma ou de outra. Além do que, sua morte não seria mais certeza de evitar a guerra. Não se arrependia de nada que fizera. Vivera muito, e muito bem. Mas, começava a considerar que, talvez, pudesse viver mais se houvesse tido um pouco mais de cautela. Prudência, dinheiro no bolso e canja de galinha jamais fizeram mal a alguém. E ele ignorara os três, pelos últimos duzentos e cinquenta anos, desde que se rebelara contra seu mestre. Nesta época, foi um dos que agitou a sociedade européia, e realizou ataques em todos os círculos sociais. Chegou a quase ser pego, muitas vezes, quando atacava quem bem entendesse, sem cuidado algum, e sorvia não apenas o sangue, mas também os fluidos do amor e da luxúria.

  Ouviu-se algum ruído vindo de fora da casa. Era uma tarde nublada, mas sair da casa, ainda assim, era muito arriscado. O Brasil não é país para um vampiro. Pelo menos, grande parte do Brasil, onde o clima tropical e equatorial garantem altíssima incidência da peçonhenta luz solar. A maioria dos poucos que para cá vêm tem algum objetivo profissional ou alguma missão diante do Grande Conselho. Ou, mais comum, está fugindo. Ao ouvir o ruído, Eva recomendou que Adão se ocultasse, mas manteve a ordem de vigilância sobre o Sr. Giardini. Sem aceitar questionamentos, ela chamou Emílio para subir as escadarias.


  Subiram, então. Emílio estava desconfiado. Algo havia de errado. Adão parecia muito resignado, como se tivesse certeza da morte iminente. Lionel, não parecia nem um pouco entregue à situação, mas aparentava estar amarrado a Adão, incapaz de se movimentar.

  Lá em cima, a Srta. Michelle Delacroix despiu-se de Eva. E, logo depois, Michelle despiu-se, também, do Srta. Delacroix. Restou-lhe, apenas, a mulher, quase nada da vampira. Com um olhar cúmplice, ela o atraiu para um quarto.

  - Eu estou prestes a morrer, e você tenta me levar à Suite Presidencial? Não acha que justo agora eu vou ter cabeça para...
  - Relaxe, confie em mim...

  Ela o puxou pelas vestes, e começou a despi-lo. Ele, até então seguro de que não seria capaz de se animar para nada, olhou-a nos olhos, estupefato. Foi mais do que o suficiente. Em segundos, estava pronto. Fizeram amor, como se fosse a última vez. Ora, seria, mesmo, a última vez!

  Sobre a cama, Michelle mostrou-se em toda a sua esplendorosa beleza, lasciva, envolvente. Braços e pernas se confundiam no magnífico ballet de suas carnes. Emílio deixava-se dominar por aquela fêmea poderosa que o subjugara, enquanto suas próprias veias saltavam como fossem explodir. Quando as sensações atingiam o grau máximo, e ao júbilo infindável se assomava o momento do orgasmo, ela cravou-lhe os dentes na jugular. Por um par de segundos, ele sentiu uma dor lancinante torturá-lo. Não, ela não lhe cravara os caninos saltados, como pareceria óbvio esperar. Ela fincou-lhe os dentes incisivos uma força descomunal, e arrancou-lhe um bom pedaço do pescoço. Se houvesse sangue, lhe jorraria aos montes, com certeza.

  Mas, muito rapidamente, a dor passou. Algo que Michelle fizera provocou uma dormência agradável, que se difundiu dali para todo seu corpo. Emílio não entendeu, imediatamente, o que lhe ocorria. Sentiu, mesmo, um sono devastador. Mas, antes que ele se pudesse entregar à sonolência, ela o chamou.

  - Não durma, ainda, mon amour. Você precisa viver!

  Ouviu-se um forte estampido vir lá de fora. Mas ele mal parecia ouvir. Estava entorpecido por alguma substância que ela parecia ter-lhe inoculado, e mais ainda pelo poder daquelas palavras. Ela o amava, então?

  Adão chegou ao quarto apressadamente, como quem subira as escadas em um só passo. Emílio jamais vira tal expressão de pânico em sua face. Na verdade, Emílio jamais vira qualquer expressão naquela face, e justo o pânico não era bom augúrio. Ele já chegou falando, antes mesmo de poder ver o que se passava.

  - Lionel está entregue, Eva! Vamos!

  Só então, Adão viu que estavam completamente despidos. Não entendeu nada. Eva apertava fortemente Emílio, quase adormecido, entre seus braços. Adão tentou apressá-los. Era momento de correr, pois seus algozes subiriam rapidamente, vasculhariam toda a casa, e não deixariam passar nada.

  Emílio não encontrava forças para se levantar. Michelle sentia isto, e parecia sofrer, pois não queria perdê-lo. Ela levantou-se, enrolou o rapaz com um cobertor, e saíram, juntos, por uma passagem secreta que levava a uma outra saída subterrânea que ninguém mais conhecia. Era uma rota de fuga difícil de ser descoberta e quase impenetrável, destinada originariamente a proteger o Grande Líder. O segredo desta passagem houvera sido revelado para a fuga de Adão e Eva, após o cumprimento desta missão.

  Mas não era possível se arriscar. A passagem subterrânea era estreita, e Eva carregava Emílio com muita dificuldade. Ao sair, encontraram-se em uma caverna, cercada por uma densa mata. Este pedaço tão encorpado da floresta, praticamente intranspassável, pertencia à propriedade, e fazia parte da rota de fuga. Os raios solares não chegavam aos planos mais baixos. Mas não era possível carregar ninguém por lá. Era preciso muito jogo de cintura para passar por entre os galhos e raízes.

  Não podendo mais seguir, Michelle sentou-se em uma pedra, acolhendo Emílio em seu colo. O corpo desfalecido, tão amorosamente amparado, e a expressão de sofrimento de Michelle, tudo remetia à imagem de la pietà*. Adão hesitou um instante, pensando em esperá-la. Mas percebeu que ela não viria. Emílio agonizava. Sua jugular e os órgãos em derredor cessavam, lentamente, o processo regenerativo. Ele parecia estar nos últimos instantes. Àquela altura, Lionel certamente já havia sido morto. Adão, é bem provável, já se aproximava do esconderijo definitivo, de onde somente partiriam à noite. Mas ela estava ali. A musculatura de Emílio começava a perder totalmente o tônus, como se ele se entregasse. Seu olhar, até então fixo na mulher que tanto amava, começava a se perder no espaço. Logo, seus olhos não foram mais capazes de se manter abertos. Michelle chorava copiosamente, pedindo que ele não partisse, que resistisse um pouco mais. Emílio revirava os olhos, umedecidos pelas lágrimas de Michelle.

  Tudo estava perdido. Todo o seu esforço havia sido em vão. Ela, decididamente, não nascera para o amor. Em toda a sua vida, amara apenas um homem, com quem se casara, antes mesmo de se tornar vampira. Ele era um nobre, que a amou genuinamente. Mas ela era uma serva, e esta união incomodou muita gente. Eles teriam que ser retaliados. E foram. Ainda na noite de sua lua-de-mel, antes que pudesse ser consumado o casamento, ele morreu em seus braços. Ela se perguntava o por que de tudo isso. Em toda sua existência como vampira, recusou-se a se entregar à paixão, ao amor. Jamais se permitira, jamais sentira, sequer, falta disso. Mas, agora, amava novamente, de maneira irremediável, e não podia fugir disso. E ele estava condenado à morte. Morria, agora, em seus braços.

  Michelle Delacroix via passar um filme, em sua mente. Lembrava de como herdara seu belo sobrenome de seu marido, um nobre de família cristã, na época em que este credo começava a se alastrar. No dia do casamento, quando iniciava a festividade, o casal estava prestes a sair à francesa, para desfrutar dos prazeres das núpcias. Foi quando chegaram os poderosos senhores daquelas terras, acompanhados de sua guarda, para levar Michelle. Alegavam ser ela uma serva,e exigiam o droit de cuissage**. Armand Delacroix estava sujeito, com isso, à vergonha pública, pois um nobre não era obrigado a experimentar tal humilhação. Mas não era isso que lhe incomodava. Recusou-se a sujeitar sua tão amada esposa a tal degradação. Empunhou sua arma, e, junto a toda comunidade, resistiu. Poucos sobreviveram, poupados apenas para recontarem a história. Todos precisavam saber o que acontecia a quem mancha o nome nobre de sua família ao desposar alguém inferior. Em seus braços. Ele morrera em seus braços. Esta imagem não lhe saía da cabeça. E seu novo amor morria, novamente, em seus braços, também vítima da intransigência de outrem. Doía-lhe no peito a certeza de que jamais poderia amar, sem por isso ter de suportar o peso de ver morrer o seu amado.


  Michelle sofria, calada, olhos fehados, as lágrimas lhe escorrendo abundantemente do rosto, por seu destino tão cruel. Um repentino e violento espasmo a trouxe de volta à realidade. Emílio começava a reagir. Tremia de frio, dentro das cobertas ensopadas pelas lágrimas de Michelle. Seu pescoço já estava quase que completamente regenerado. O choro de Michelle, agora de emoção, foi redobrado. Ela o salvara! Funcionara! Ele acordava fraco e atordoado, sem compreender o que se passava em derredor.

  Um ruído já esperado por Michelle se fez ouvir. Queria dizer que funcionara um outro plano que ela articulara em segredo: Adam, o líder da Acção, os seguia. Despontaria na passagem secreta muito em breve, o covarde, e certamente não contava com a presença deles. Ele sempre foi muito impulsivo, o que fazia dele um péssimo caçador de vampiros. Aquele texano conservador, racista, branco da face rosada somente chegara ao poder dentro da Acção através de muita corrupção, e se auto-denominava o maior inimigo dos vampiros de toda a história. Ele se aproximava cada vez mais, e Michelle olhou Emílio nos olhos, como quem dá uma ordem firme. Ainda atordoado, quase inconsciente, Emílio avançou sobre Adam, antes mesmo que pudesse vê-lo. Nem bem era capaz de perceber o que fazia, já havia arrancado um naco de carne do pescoço de Adam, deixando à mostra a carótida direita. Ele parecia saber como agir, mas estava fraco demais para compreender o que fazia. Concentrava toda sua energia em agir, não em pensar, enquanto Adam ainda começava a tomar consciência do que lhe ocorria. Michelle, por sua vez, dava cada instrução, com um olhar firme, quase agressivo. Adam tentava reagir, mas havia sido pego de surpresa, e deixara cair no chão tudo o que poderia usar para se defender. E não era páreo para a força de um vampiro. Jamais seria. Emílio rasgou com capricho a exposta artéria pulsante de Adam, e provou de seu sangue. O sabor não tinha nada de extraordinário, mas a sensação de prová-lo era indescritível, única. Michelle o orientou a deixar a saliva se misturar ao sangue, ainda dentro da artéria de Adam. Ao fazê-lo, sentiu, misturada à sua saliva, alguma substância refrescante. Era uma substância anticoagulante, com potentes propriedades analgésicas, que ele introduzia no corpo de Adam, eliminando sua resistência.

  Dos ouvidos de Adam, e de sua gengiva, começaram a escorrer finos fios de sangue. Seus olhos, até então saltados, também vertiam o líquido encarnado, como se ele chorasse sangue. Neste momento, Emílio percebeu o que fazia com aquele homem, para ele, desconhecido. Quedou-se horrorizado com o mal que provocava a alguém cuja existência, simplesmente, ignorava até aquele momento. Quis parar, mas não conseguia. O sangue daquele homem lhe parecia corroer a consciência, ou seu auto-controle, mas ele se sentia fisicamente fortalecido, como jamais se sentira. Era inebriante, perturbador, até, a sensação de urgência que começava a sentir por sorver cada mínima gota. Com muito esforço, conseguiu parar.

  - Beba até o fim, Emílio!
  - Não posso!
  - Beba, logo! Vá!
  - Mas, isso vai matá-lo!
  - Ele veio atrás de nós, para nos matar, Emílio. Vamos! - Emílio resistia - Se não matá-lo, ele se transformará em um vampiro muito perigoso, e vai nos perseguir até acabar com todos nós! E será um vampiro ligado às suas energias vitais! Vamos, Emílio, logo! Se você deixá-lo ligar-se a você, em breve não terá mais força para sobreviver, você está fraco demais! Mate-o! - Emílio sugava, ainda hesitante - Isso! Beba o sangue, isso vai fortalecê-lo para podermos fugir.

  Mas, no último instante, Emílio fraquejou. Não teve coragem de matar aquele homem. Eva - neste momento, não era Michelle quem agia - desferiu um golpe rápido contra aquele corpo que jazia, arrancando-lhe a cabeça. Lançou os restos mortais para o meio do mato, onde sabia que algum animal selvagem faria dele sua refeição. Emílio, embriagado por tantas sensações, acompanhou com o olhar surpreso cada movimento daquela mulher impressionante.

  - Vamos, agora você está fortalecido. Acho que consegue vir!

  E ela desapareceu no meio da densa mata. Ele correu atrás, seguindo o próprio olfato, reconhecendo a fragrância natural que jamais confundiria em sua vida. Logo, não era possível a qualquer ser vivente encontrá-los.

  Adão aguardava a chegada de Eva, mas não contava com a aparição de Emílio. Completamente perplexo, espremeu-se mais para o canto, e os recebeu dentro do estreito abrigo.


Pablo de Araújo Gomes




Breve glossário:

* "La Pietà", em português, "A piedade". Representação comum em artes visuais, na Idade Média, Jesus morto nos braços da Virgem Maria. A versão a que se refere o texto, precisamente, é também a mais célebre de todas: a escultura perfeitamente acabada por Michelangelo, aos 23 anos de idade, no período do Renascimento, e que hoje agiganta a Basílica de São Pedro, no Vaticano, onde repousa.

** "droit de cuissage" (na França), ou "primae nocte" (na Europa em geral). Considerava-se que todos os servos pertenciam ao seu senhor. Decorrente desta concepção, apoiada, inclusive, no posicionamento da igreja católica, surgiu um hábito medieval, segundo o qual, na primeira noite após o casamento (a lua de mel), a noiva pertencia ao Senhor Feudal, que a defloraria, ele mesmo. Em algumas regiões, chegaram a ser promovidas verdadeiras orgias, envolvendo muitos nobres, que devolviam, apenas, uma mulher traumatizada, retraída, usada e humilhada, por vezes à beira da morte. Muitas mulheres casavam-se de preto, em protesto, e muitos casamentos eram realizados em segredo. Mas os próprios clérigos, aliados da nobreza, muitas vezes deduravam estes casais, que eram severamente punidos.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Capítulo VI - Aguardando Visitas

     - EVAAAAAAAAA!!!

     Assim, com um grito, como alguém que acorda de um pesadelo terrível, Emílio despertou. Tinha, à sua volta, Lionel, que lhe fazia uma compressa de água fria, e Adão, que não tirava os olhos de Lionel.

     - Nunca vi um vampiro ter febre. - Emílio tentava se recompor. Olhava, assustado, para Lionel, que seguiu falando com uma calma ironia, quase insuportável. - Aliás, meu caro, a sua temperatura corporal teria sido uma sentença de morte para qualquer um. Nunca ouvi falar em nada parecido.

     Adão pareceu assentir, observando tudo quase curiosamente, mas sempre inexpressivo. Lionel continuou.

     - Hummm... a julgar pela camisa rasgada, e pela sua temperatura, parece que as coisas foram bem quentes, por aqui... Ah! Perguntou pela sua nova "madrinha"? Ela já partiu, antes que qualquer um pudesse esperar. Ninguém a vê, desde ontem. Ou será que ela apareceu para alguém?

     Por trás da pergunta, escondia-se um certo escárnio, fosse por pura ironia, fosse por sentir inveja de algo, ainda que lhe parecesse improvável que ela houvesse aparecido. Vendo Emílio calado, desconcertado, Lionel arriscou, ainda, uma nova pergunta.

     - O que você queria com ela?
     - Nada, não!
     - Você mente muito mal, rapaz. Pode me dizer!

     Emílio sentiu uma vontade irresistível de revelar tudo. Aquele olhar de Lionel, ou talvez o seu toque paternal, ou qualquer coisa nele fazia com que Emílio se sentisse completamente entregue ao controle de seu novo amigo. Devia ser a influência de que alguém havia falado. Não conseguiria mentir, de forma alguma. Mas, algo lhe surpreendeu: ao pensar em Eva, conseguiu calar-se.

     Lionel olhou com mais intensidade, já intrigado. Seu olhar e seu toque deveriam exercer um poder quase hipnótico sobre Emílio. Por que não acontecia nada? Algo estava fora do normal, certamente haveria qualquer coisa fora da ordem. Com o olhar, Lionel parecia entrar nos olhos de Emílio, como a perscrutar qualquer pensamento. Mas, nada lhe ocorria. Não conseguia ler seus pensamentos, nem ouvi-los.

     - O que está fazendo?
     - Procurando o que há de errado.
     - Como assim? Algo deveria estar errado?
     - Esqueça!

     A resposta foi fria, quase ressentida. Lionel sabia que deveria ter poder quase ilimitado sobre a mente de Emílio. É o que acontece quando se transforma alguém. Lionel não apenas se recusava a aceitar aquilo, como jamais poderia revelá-lo. Era algo sem precedentes perder o poder de influenciar seu pupilo com menos de uma semana. Esta capacidade costumava perdurar por muito tempo, mesmo depois que a vida do recém transformado alcance a independência. E apenas muito lentamente se diluía.

     Este pensamento provocou-lhe um profundo arrepio na espinha, como não sentia havia décadas. Se o jovem rapaz alcançasse a independência, logo ele mesmo perderia qualquer proteção. Mais do que isso, ele teria criado um monstro. Ninguém alcançava tamanha independência em tão pouco tempo! De que seria capaz? Não era algo aceitável, provavelmente seriam ambos mortos o quanto antes.

     Emílio interrompeu seu raciocínio.

     - Quando você vive, a morte não existe. Quando a morte existe, você não.
     - O que?
     - Demócrito dizia isso, não é? Ele acreditava que nossa alma se dispersa em átomos para formar outras almas. Acontece com o nosso corpo, disso já sabemos. Bem, a nossa alma não se dispersa, mas, agora isso já não interessa, porque não a tenho mais.
     - Aonde você quer chegar com isso, garoto?
     - Lugar nenhum. Lembrei-me do dia em que você me transformou. Você disse que tudo ia acabar, mas só para mim. Mas, não vai haver um "eu" para sentir falta da vida. Se eu sou apenas um conjunto instável de átomos, então, qual o problema que eles se dispersem? Morrer já não me parece tão mau...
     - Você está depressivo, garoto? - perguntou Lionel, enquanto examinava o seu paciente.
     - Não, eu quero viver. Só não vejo mais problema em morrer. Não temo a morte. Não vou conhecer a morte.
     - Você já não tem mais febre. - e continuou, após certo silêncio - Então, você não vê mais problema em morrer?
     - Não. Algo em mim me diz para sobreviver, para lutar pela vida...
     - Seu instinto de sobrevivência, claro.
     - Que seja! E eu acho que irei obedecer a esta ordem. Mas, se a morte vier, que venha!
     - Não chama, que ela vem! Ela já está nos procurando, lembra?

     Ambos riram às gargalhadas, cúmplices, sem entender exatamente qual era a graça. Sabiam do que estavam falando, e se entenderam, ao se entreolhar, após todo o riso. Deveriam lutar por suas vidas. Lionel convidou Emílio a saborear algum vinho na Sala de Estar, enquanto aguardavam a chegada dos dirigentes da Acção, mas Emílio não demonstrou muito interesse. Um tanto inseguro, Lionel tentou induzi-lo a aceitar a proposta, e funcionou de imediato. Que alívio! Talvez, tudo não tivesse passado de um mal entendido.


     Enquanto Emílio se banhava, Lionel escolheu para ele um elegante smoking. Em cada quarto havia um guarda-roupas com roupas sob medida para o hóspede do quarto. Quase todas, dignas de serem usadas em uma cerimônia do Oscar, em Hollywood.

     Lionel foi para o seu quarto, banhou-se e se vestiu com uma velocidade surpreendente. Quando prontos, saíram ele e Emílio, rumo à Sala de Estar. Atrás deles, o olhar atento de Adão não lhes deixava escapar o mínimo gesto. Emílio, quase constrangido, tentou estabelecer algum contato.

     - E você? Não se chama Adão, se chama?
     - Não posso responder.
     - Vamos, guardo o segredo. Como é o seu nome?
     - Nomes e biografias reais só são permitidos a iniciados.
     - Mas, me aprovaram no conselho, ontem, não aprovaram?
     - Condicionalmente.
     - Como assim, condicionalmente?
     - Meu caro, - Lionel tomou a palavra - você foi aprovado, sim, mas só se a proposta de Eva der certo. Ainda assim, mesmo que dê certo, nada pode ser feito até a sua efetiva iniciação.

     Poder-se-ia dizer que Adão sorriu, se ele por acaso sorrisse. Mas, inexpressivo como sempre, deixou passar um certo ar de satisfação. Aquele interrogatório o incomodava bastante, e Lionel percebera isto. Por isso, mesmo, tentou dar o assunto por encerrado.

     Chegando na Sala de Estar, havia uma verdadeira recepção instalada, como se esperasse um grande evento de gala. Distribuídos no ambiente, dezenas de pessoas, todos vampiros. Cada qual olhava mais secamente para os recém-chegados. Era, no mínimo, desconcertante, e uma sensação de angústia tomava Emílio violentamente. Percebendo isto, Lionel usou de sua influência para tranqüilizá-lo. Lionel, sim, era suficientemente cínico, a ponto de não ligar para os olhares. Já estava acostumado a ser a ovelha negra do rebanho, havia muito tempo.

     Com a ajuda de Lionel, Emílio pôde saborear detidamente cada um dos vinhos da casa, ignorando os olhares corrosivos dos presentes. Experimentou cada sensação, e os acompanhamentos indicados. A certa altura, Emílio reconheceu o sabor familiar de um vinho em particular.

     - Este é o mesmo vinho que eu guardava em casa...
     - Um primor, não é?
     - Excelente! Mas, como eu posso reconhecer?
     - Alguns enólogos reconhecem...
     - Sim, gosto de vinho, mas estou longe de ser um enólogo.
     - Sei, sei. Por isto estou apresentando cada sabor em particular. Prove este, agora.

     Emílio prova o vinho vermelho. Acha-o delicioso, mas questiona.

     - E, por que você está fazendo isso?
     - Diga-me o que achou do vinho.
     - Muito bom.
     - Não. Descreva-o.
     - Ele é bem encorpado, tem baixa acidez, lembra aquele Bordeaux, que você me mostrou há alguns minutos, mas é levemente diferente...
     - Prossiga...
     - A concentração é soberba, sem dúvida, mas não é doce demais. - Lionel fazia um gesto que continuasse - e... deixe-me ver... - tomou mais um gole - além de tudo, é suave, passa aveludado pela boca... mas, por que você quer saber de tudo isso?
     - Perfeito! Você deu a descrição que um especialista daria a esta safra do Opus One. Faria isto, antes de se tornar vampiro?
     - Claro que não!
     - Entende, agora, por que lhe apresento os vinhos? São seus sentidos, meu caro. Seus sentidos estão bastante apurados. É hora de experimentar o mundo, de aprender o que é bom!

     Emílio parecia finalmente se entregar ao evidente hedonismo de Lionel, e deliciar-se mais e melhor com os vinhos. Aprendia, também, a lidar com os olhares, por conta própria. Ou com ajuda dos vinhos, tanto faz. Mas, quando tudo começava a parecer calmo e sem maiores expectativas, chegou Michelle Delacroix, como um tufão. O olhar grave, um ar urgente, vinha como quem chegasse do nada, e concentrou os olhares interessados de todos os presentes.

     - Todos, à sala de reunião. É urgente!

     Sem pânico, mas com uma evidente pressa, todos seguiram-na até a sala de reunião. Dentro da sala, todos pareciam saber onde se sentar, embora a escolha dos lugares fosse, para a maioria, aleatória. Assim, logo estavam todos reunidos e acomodados. A Srta. Delacroix não esperou mais do que isso para começar a falar.

     - Eles não vêm para a reunião. Eles vêm para um extermínio. Querem começar pelas lideranças, que sabem estar aqui. Querem nos desarticular, para facilitar a caçada. Descobri, ainda, que os planos não são novos, nós apenas demos a ocasião.

     Em outra ocasião, ouvir-se-ia um burburinho tomar o ambiente. Houve, no entanto, uma intensa troca de olhares. Olhares cortantes, capazes de matar alguém, dirigiram-se para Lionel. Alguém se pronunciou.

     - Quem poderia ter sido tão ingênuo, a ponto de acreditar que haveria acordo?
     - Todos nós acreditamos! - Alguém interveio.
     - É verdade, mas, agora já é tarde para tal. Precisamos decidir o que fazer. - Declarou sabiamente a Srta. Delacroix.

     A resposta veio quase em uníssono. A decisão geral era o que se podia esperar. Entregar-se-ia Lionel.
     Eva não revelara onde ficava a Sede do Conselho no Brasil, mas eles logo descobririam. A ordem era evacuar, e deixar apenas Lionel e o jovem rapaz. Ou levar o rapaz, não faria diferença. Ele estava previamente condenado à morte.

     Eva e Adão ficariam responsáveis por garantir que os dois vampiros não saíssem, e estariam livres para fugir quando tal missão estivesse cumprida. "Alea jacta est"*, pensou Emílio, talvez acompanhando inconscientemente o raciocínio de Lionel, que balbuciava algo como "Le scommesse sono state effettuate..."**. Mas, calada consigo, a Srta. Delacroix não parecia estar disposta a deixar tudo a cargo da sorte. Algo deveria ser feito. E seria.


Pablo de Araújo Gomes





A Pedidos, breve glossário:

* "Alea jacta est", latim, "a sorte está lançada", ou "os dados estão lançados". Esta frase é atribuída a Júlio César, quando teria ingressado com suas legiões em territórios em que não era permitido fazê-lo. A proibição se justificava no passado de golpes militares para tomar o poder em Roma. A versão mais cristanizada desta frase seria o popular "seja o que Deus quiser!".

** "Le scommesse sono state effettuate...", italiano, "As apostas foram feitas...". No contexto, ambos personagens pensaram a mesma coisa, mas traduziram o pensamento em diferentes palavras.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Bônus I - Delírios...

     Emílio ardia em febre. No quarto escuro, nada era capaz de ver, senão a porta se abrindo lentamente. Uma fragrância familiar adentrava suavemente em seu quarto, e ele quase era capaz de vê-la, ou saborea-la. Quase como levasse um choque elétrico, Emílio sente a presença marcante de alguém. Surge, sensualmente, um vulto na porta entreaberta. É uma mulher linda, perfeita, ruiva. A mulher dos seus sonhos. Sim, sim, é Eva. Ou, Michelle Delacroix, como preferir. Ela vem em sua direção, e o olor que exala o desperta violentamente, como um chamado da natureza para a urgente missão de salvar sua espécie.

     Emílio levanta-se, trêmulo, os braços estendidos para frente, como tentasse alcançá-la. Ela o empurra na cama, dominando-o. Despe-se vagarosamente, quase como numa dança. Quase, claro. Sua sensualidade tem um estilo que lhe parece completamente novo, despido de qualquer clichê. Emílio rasga as próprias vestes, em um gesto quase animalesco, com o qual fere o peito com suas unhas. Ela lhe contém o ímpeto de proferir um urro, puxando-o para si e roubando-lhe um beijo ardente.

     Ela avançou sobre o rapaz, como em um ataque felino, e assumiu o comando do fervente encontro de suas carnes, como fosse devorá-lo naquele mesmo instante.

     Emílio sentia o imensurável prazer em todas as suas cores e sabores. O fervor febril de sua pele não chegava a sobrepujar o calor interno daquela mulher cheia de mistérios e encantos. Todas as coisas assumiam formas que lhe pareciam impossíveis, inclusive o casal, que se fundia em um só corpo.

     Quando, em poucos instantes, as cobertas encharcadas de suor já pareciam entrar em ebulição, ambos já atingiam o ápice do prazer. Todos os músculos inumanamente retesados resistiram em relaxar, e a distensão de ambos os corpos lhes parecia fazer diluir nas águas de seus lençóis.

     Ela, neste instante, escorreu sorrateiramente, como o faria uma densa sombra, deixando, apenas, no ar, o perfume de seu prazer e medo, e, na cama, seu amante, que não parava de chamar o seu nome...


Pablo de Araújo Gomes