sábado, 20 de março de 2010

Capítulo X - A Nova Missão de Eva

     Emílio acordou com o som de chaves. Após alguns segundos, tentando se situar, identificou onde estava. Estava na casa do senhor Katze, e eram as suas chaves que acordavam Emílio. Michelle já estava acordada, pronta para sair, e velava seu sono. Naquela casa, a cama de casal era a única coisa realmente grande. Não é à toa que ocupava quase todo o quarto. As roupas do simpático senhor eram guardadas em um baú, ao lado da cama. A sala era pequena, e possuía apenas uma poltrona e uma cadeira de balanço, ambos um tanto desgastadas. A cozinha era praticamente inexistente, e se resumia a uma pia e uma antiga geladeira quebrada, que fazia as vezes de armário. Era possível deduzir, com isto, que o senhor não passava muito tempo em casa. Um banheiro bem pequeno, rebocado com cimento, o acabamento mal feito, definitivamente não inspirava muita confiança em sua higiene. Era um casebre, por fim, bastante simples. E o melhor para Emílio e Michelle é que não tinha uma só janela. Somente pela porta da frente é que se podia entrar e sair, pois a minúscula casa se espremia timidamente entre outros três pequenos imóveis, certamente muito semelhantes a ela, naquela pobre vila construída há décadas, em um terreno invadido.

     - Levante-se, mon amour, e vista estas roupas aqui. Sairemos logo.

     Michelle entregou-lhe roupas bastante formais, dignas de serem usadas em uma reunião de negócios. Ele as tomou e se pôs a vesti-las. Herr Katze, bom anfitrião que era, servira uma modesta mesa que improvisara no meio da sala, e sentaram-se para jantar.

     - Sinto muito que não seja um banquete. - disse o Herr Katze, cerimoniosamente - Comprei o melhor jantar da região, mas receio que seja demasiado simples para vocês.
     - O que é isso, Sr. Katze? - respondeu, docemente, Michelle - Sabe que não faço cerimônia. Além do que, ter feito tanto por nós, sem precisar, já está de ótimo tamanho.
     - Faço-o com prazer, senhorita. Bem o sabes. - retrucou, ainda, o senhor, sorridente - Com o perdão pela ironia, você foi como um sol na minha vida. Pena que sempre demora tanto a vir me visitar, e logo não mais a verei.
     - Deixe disso. - Michelle parecia sentida, mas tentou falar com delicadeza - O senhor ainda tem muito tempo nessa vida, e ainda nos veremos muito.
     - Não estou muito convencido disso... - O simpático e sorridente senhor tinha lágrimas nos olhos, ao dizer isto, mas tentou manter a compostura - Comamos logo! O tempo corre, e não tarda a hora de vocês partirem para o aeroporto.

     Emílio, claro, não entendeu a profundidade deste breve diálogo. Desconhecia quem era o Sr. Katze Stern. Desconhecia que ele era, desde a juventude, apaixonado pela Srta. Michelle, que conhecera ainda na velha Alemanha Oriental, devastada pela recém-acabada Segunda Guerra Mundial. Ignorava, também, que era por ela que ele estava no Brasil, pois ao saber que ela para cá viajaria, e reparando quanto mistério ela fazia sobre as causas de sua viagem, suspeitou que Michelle fosse uma comunista, em missão revolucionária. Deste modo, também se credenciou para receber o treinamento e lutar pela causa revolucionária no Brasil. O então jovem Stern demorou a entender que Michelle não era comunista, e sua demora em percebê-lo lhe custou a liberdade. Foi preso político, e sobreviveu a duras penas, agora, ao regime ditatorial brasileiro, pouco tempo após ter sobrevivido a anos de violências e trabalhos forçados em campos de concentração nazistas. Foi Michelle quem o resgatou, e foi nesta época que ele conheceu "Eva". Somente assim, soube algo do grande segredo que ela guardava. Porém, se sua amizade somente crescia, por outro lado, ela parecia incapaz de se sensibilizar a seu amor. Por anos a fio, o jovem envelhecia, entre idas e vindas de sua amada. Muito tempo lhe custou acostumar-se à idéia de não tê-la jamais para si. Ela não era sequer como um pássaro que canta em sua janela, para alegrá-lo, e parte em seguida. Um pássaro pode ser capturado. Ela era como um sol que iluminava a sua vida, e depois partia, deixando tudo em total escuridão. Ele não poderia, jamais, conquistá-la.

    Michelle sentiu grande pesar, pois sabia que realmente não voltaria a ver seu grande amigo. Mas, mesmo tendo perdido o apetite, forçou-se a comer bem. Não podia fazer uma desfeita justamente no último dia em que se veriam, nem poderia deixar de se alimentar bem antes da longa viagem que os aguardava.

     Terminado o silencioso jantar, o Sr. Stern entregou-lhes dois passaportes, um pouco amarrotados. Pareciam ter sido usados por anos. Emílio não pôde conter o espanto ao perceber que os documentos eram seu e de Eva. Precisamente, do senhor e da senhora Dubois.

     - Como assim, Jean-Pierre Dubois? Eu não falo uma só palavra em francês! E como ele conseguiu a minha foto?
     - Você pergunta demais, rapaz. Eu peguei na sua casa, enquanto você tomava banho. Sabia que precisaria para alguma coisa, um dia. E não se preocupe. Você não vai precisar dizer uma só palavra. Faça-se de surdo, e eu resolvo o resto por você. Vamos?
     - E para que isso? Um brasileiro não viaja à França?
     - Você tem visto de turista? De estudante? Não. Émille Martin Dubois, dois dos três sobrenomes mais comuns na França, ninguém vai reparar em você. E seu biotipo e essa cara pálida ajudam um bocado.

     Eva despediu-se pela última vez de seu amigo. O abraço foi demorado, e teria sido mais, se não fosse o tempo a avançar impiedosamente a despeito deles. Não poderiam perder o avião. Michelle havia conseguido armar uma viagem realmente complexa, para que, com todas as pontes aéreas, eles estivessem sempre à noite. Dariam a volta ao mundo, entre uma e outra parada, trocariam de avião inúmeras vezes, e desembarcariam quase um dia depois do início da viagem, em Paris. Seria uma viagem longa e cansativa. Mas seria perfeita, e era uma oportunidade que não teriam tão cedo. Além disso, Emílio ainda tinha a face um tanto deformada, pelas queimaduras, mas as bolhas já haviam se desfeito. Seus braços e os de Michelle, também. A dilatada duração da viagem seria positiva porque, até que pisassem em solo francês, já estariam quase normais.

     Então, Emílio agradeceu pela hospedagem, e por todos os cuidados. Prometeu, embora sem certeza, que voltaria, e que daria um jeito de retribuir o favor. Entraram em um táxi, e partiram para o aeroporto.


     Após um trânsito infernal, que já esperavam ter de enfrentar, chegaram ao aeroporto. Michelle já tinha em mãos as passagens, e a espera rotineira, que sempre antecede as viagens de avião, terminou antecipadamente. Circunstâncias extraordinárias tornavam necessário adiar ou cancelar o vôo, ou mesmo antecipá-lo, aproveitando a brecha de um plano de vôo já cancelado. Esta idéia que foi colocada como opção para os passageiros, que estavam já todos presentes, e estes concordaram prontamente. Não demoraram a entrar no avião.

     O piloto já se apresentava, quando, repentinamente, como ocorresse um erro, começou a tocar, no avião,  em volume bastante alto, uma belíssima canção dos Beatles. "Michelle, ma belle / These are words that go together well, / My Michelle...". Desconcertado, o capitão e a tripulação tentou resolver o problema, sem muito sucesso. Alguns passageiros acharam graça, outros, não tão bem humorados, resmungaram algumas queixas sobre a evidente desorganização, ou mesmo a eventual incompetência da tripulação. Tão inesperado quanto começou, a música foi interrompida. Para a tripulação, um alívio. Para os passageiros, de modo geral, o fim de uma piada. Para Michelle, uma mensagem. A última frase cantada no rádio foi "I will say the only words I know that you'll understand", "Eu direi apenas as palavras que sei que você entenderá". Era como um sinal, uma senha antiga, que ela já usara no passado, para avisar que ficasse atenta a sinais. Mas, ela não usava aquela senha havia anos, e nunca de forma tão ousada. E ninguém mais sabia que ela estaria ali. Ou não deviam saber, pelo menos. Quem ainda os seguia tão de perto?

     Em poucas horas, a primeira parada. Michelle e Emílio - o casal Dubois, para todos os efeitos - tiveram que se separar dos demais passageiros, para tomar um outro avião. Foram indicados para um vôo que sairia imediatamente, sequer tendo tempo para esticar as pernas.

     Pegaram o novo avião. Após todo o procedimento de praxe, levantaram vôo. Eva não conseguia entender. Nenhuma mensagem lhe chegara, ainda. Àquela altura dos acontecimentos, já deveria tê-las recebido. Teria sido coincidência? Ou será que ela deixara passar algo importante? Aquele mistério lhe incomodava sobremaneira, enquanto Emílio dormia tranquilamente, ao seu lado. Incomodava-lhe tanto, que ela terminou não sentindo o tempo passar. Em poucas horas, o avião aterrissava em solo recifense, realizando uma inconveniente guinada na viagem, e prejudicando gravemente todos os seus planos.

     Foi assim, por acidente, que o suposto casal Dubois desembarcou em Recife, e teve sua viagem interrompida. Constatado o engano, não mais se podia fazer algo, imediatamente, sem correr o risco de ver nascer o Sol. E o dinheiro minguara. Estavam, novamente, prisioneiros da sorte.


     O Aeroporto Internacional dos Guararapes, modernamente belo, foi obscurecido aos seus olhos, diante do impasse. Mas, muito em breve, tudo se explicaria.

     - Walia?! - Espantou-se Michelle ao ver, diante de si um senhor forte, bem aparentado.
     - Quem? - Estranhou Emílio o espanto de Michelle.

     O senhor, que os aguardava com os olhos fixos na abatida Michelle, era uma figura imponente. Tinha a barba crescida, cor de creme, vistosa e bem cuidada. Creme, também, era a cor de seus cabelos, com grossas tranças por detrás de si, e guardados sob uma discreta boina, que remetia a paisagens francesas. Aparentava ter seus cinqüenta e tantos anos. Mas, Emílio já percebera, não se podia fiar nas aparências, quando, possivelmente, se trata de um vampiro. Não demorou até que aquele senhor imponente e quase majestoso se dirigisse a Michelle, em um idioma que a Emílio pareceu completamente estranho. Para Eva, que finalmente, após o choque, reassumiu o caráter de agente, o idioma não era tão desconhecido. O teor do diálogo, enquanto caminhavam, foi algo semelhante a isto:

     - Você solicitou a sua audiência particular e não compareceu, quando chamada. Optou por fugir, como se lhe quiséssemos algum mal.
     - Alguém nos quer mal, sim, Grande Líder! E acreditei que este alguém nos teria enviado o recado que, porventura, era vosso. Como poderia eu confiar?
     - Pois, para sua sorte, estávamos monitorando vocês. Gabriel nos foi de grande ajuda, nisso também.
     - Não devíamos ir a um lugar mais reservado? - sugeriu Eva, quando viu que entravam na praça de alimentação - Chamamos muita atenção, aqui.
     - Um aeroporto internacional é um local apropriado, para se conversar em qualquer idioma. Ninguém estranha. Também, se alguém aqui for capaz de compreender um idioma escandinavo arcaico, certamente já conhece os segredos que pretendemos esconder. Mas, explique-me o que faziam. Parece-me que tinham planos de ir à França. Paris?
     Dizendo isto, sentavam-se à mesa. Emílio ouvia a tudo, atentamente, embora sem entender uma só palavra.
     - Como eu vos disse, Senhor, cheguei à conclusão de que não poderia confiar em Gabriel, vosso mensageiro, pois o abrigo a que ele nos enviou, em São Paulo, estava repleto de armadilhas. Como pode compreender, - e Eva exibia suas queimaduras, e as de Emilio - chegamos a nos ferir, e corremos mesmo o risco de morrer. Resolvi, portanto, que seria a nossa melhor solução ir ter pessoalmente com o senhor, na sede da Ordem, em Paris.
     - Realmente, me foi reportado a sede brasileira das reuniões do Grande Conselho foi incendiada e destruída, e o nosso esconderijo em São Paulo foi encontrado repleto de armadilhas. Como você é vítima, portanto diretamente interessada neste assunto, e dado que é de total confiança, tenho de informá-la de que foi secretamente aberta uma investigação para averiguar quem entre nós é o traidor.
     - Será possível que haja um traidor dentro do Grande Conselho da Ordem?
     - Tudo é possível, minha cara.

     A conversa seguiu seu rumo, em tom cada vez menos formal. Walia era o vampiro mais antigo de que se tinha notícia, e Michelle também estava entre os de maior idade. Logo, se conheciam muito bem, e tinham bastante intimidade, para não se prenderem tanto a formalidades. Então, questionada sobre a sobrevivência de Emílio, contou-lhe o que ocorrera, passo a passo, e suas teorias a respeito. O senhor não pôde conter um certo olhar de reprovação, pela conduta libertina de Eva, que, segundo ele avaliava, foi tomada pelo impulso da paixão e desobedecera à Ordem, mantendo a vida de um novo vampiro, completamente descontrolado. Ainda assim, ele prometeu interceder por ela. Ora, se por ela intercedia o Grande Líder, ela podia respirar aliviada. Somente, então, foram apresentados Walia e Emílio. E, novamente, sem que Emílio pudesse compreender em que idioma falavam, ela pediu, formalmente, autorização para apadrinhar Emílio na sua eventual entrada para a Ordem. Declarando que Emílio já fora, em tudo de sua vida, investigado, Walia se prontificou a agilizar a iniciação.

     Quando, mais tarde, Michelle esclareceu a Emílio o conteúdo da conversa, ele ficou muito feliz em ver que tanta coisa teria sido esclarecida. Muito animado ficou, também, por saber da investigação. Mas, não pôde negar, era capaz de perceber o tamanho do privilégio que era estar frente-a-frente com o Grande Líder. Já começava a compreender que o Grande Conselho era um órgão dirigente da tal Ordem. O Grande Líder, no entanto, como ele começava a ver, embora não tomasse decisões por conta própria, seguia sendo alguma espécie de autoridade máxima, algo como uma verdadeira baliza para a atuação do Grande Conselho. E nisso Emílio não se enganou, posto que era exatamente essa a principal atuação do Grande Líder.

     Do aeroporto, custeados pelo Grande Líder, e por este restituídos os seus novos verdadeiros documentos  - vampiros têm documentos verdadeiros, e identidades legais renovadas de tempos em tempos -, seguiram para um hotel de luxo, cinco estrelas, em Boa Viagem. Lá, passariam o dia que iniciava, e, de lá, Eva sairia com uma nova missão: conquistar o reconhecimento de Emílio na Grande Ordem.

Um comentário:

  1. Tinha que passar por Recife né? ai que invejaaaaaaa tava chovendo nesses dias que eles estavam lá? que tipo de ligação o Grande líder tem com EVA? cade Adão aquele medroso?rsrsrs

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Pablo de Araújo Gomes