sábado, 27 de fevereiro de 2010

Capítulo VII - Morte Anunciada

  A casa foi evacuada. O silêncio era de morte, e aquele edifício tão nobre, mas completamente desocupado começava a parecer uma enorme cripta, de tão fúnebre. A grande ironia ficava por conta do som ambiente. Enquanto eles se preparavam para a morte, o ar era tomado pelo Requiém em Ré menor, inadvertidamente composto por Mozart para o próprio funeral. Ao olhar para Eva, Emílio teve certeza de que queria viver. Queria estar com ela. Nunca, antes, ele desejara qualquer coisa com tamanha intensidade.

  Eva, percebendo isto, pareceu compadecer-se pelo sofrimento do rapaz. Mas nada disse. Enquanto a Srta. Delacroix era Eva, era uma oficial a serviço. Não lhe cabia qualquer fraqueza humana. No comando da operação, ela dispensou Adão de vigiar Emílio. Encarregou-lhe, no entanto, de manter plena vigilância sobre o Sr. Lionel Giardini, que, pensativo, não parava de confabular algum meio de escapar.

  A Lionel, pouco lhe importava se poderia provocar uma guerra. Ele morreria de uma forma ou de outra. Além do que, sua morte não seria mais certeza de evitar a guerra. Não se arrependia de nada que fizera. Vivera muito, e muito bem. Mas, começava a considerar que, talvez, pudesse viver mais se houvesse tido um pouco mais de cautela. Prudência, dinheiro no bolso e canja de galinha jamais fizeram mal a alguém. E ele ignorara os três, pelos últimos duzentos e cinquenta anos, desde que se rebelara contra seu mestre. Nesta época, foi um dos que agitou a sociedade européia, e realizou ataques em todos os círculos sociais. Chegou a quase ser pego, muitas vezes, quando atacava quem bem entendesse, sem cuidado algum, e sorvia não apenas o sangue, mas também os fluidos do amor e da luxúria.

  Ouviu-se algum ruído vindo de fora da casa. Era uma tarde nublada, mas sair da casa, ainda assim, era muito arriscado. O Brasil não é país para um vampiro. Pelo menos, grande parte do Brasil, onde o clima tropical e equatorial garantem altíssima incidência da peçonhenta luz solar. A maioria dos poucos que para cá vêm tem algum objetivo profissional ou alguma missão diante do Grande Conselho. Ou, mais comum, está fugindo. Ao ouvir o ruído, Eva recomendou que Adão se ocultasse, mas manteve a ordem de vigilância sobre o Sr. Giardini. Sem aceitar questionamentos, ela chamou Emílio para subir as escadarias.


  Subiram, então. Emílio estava desconfiado. Algo havia de errado. Adão parecia muito resignado, como se tivesse certeza da morte iminente. Lionel, não parecia nem um pouco entregue à situação, mas aparentava estar amarrado a Adão, incapaz de se movimentar.

  Lá em cima, a Srta. Michelle Delacroix despiu-se de Eva. E, logo depois, Michelle despiu-se, também, do Srta. Delacroix. Restou-lhe, apenas, a mulher, quase nada da vampira. Com um olhar cúmplice, ela o atraiu para um quarto.

  - Eu estou prestes a morrer, e você tenta me levar à Suite Presidencial? Não acha que justo agora eu vou ter cabeça para...
  - Relaxe, confie em mim...

  Ela o puxou pelas vestes, e começou a despi-lo. Ele, até então seguro de que não seria capaz de se animar para nada, olhou-a nos olhos, estupefato. Foi mais do que o suficiente. Em segundos, estava pronto. Fizeram amor, como se fosse a última vez. Ora, seria, mesmo, a última vez!

  Sobre a cama, Michelle mostrou-se em toda a sua esplendorosa beleza, lasciva, envolvente. Braços e pernas se confundiam no magnífico ballet de suas carnes. Emílio deixava-se dominar por aquela fêmea poderosa que o subjugara, enquanto suas próprias veias saltavam como fossem explodir. Quando as sensações atingiam o grau máximo, e ao júbilo infindável se assomava o momento do orgasmo, ela cravou-lhe os dentes na jugular. Por um par de segundos, ele sentiu uma dor lancinante torturá-lo. Não, ela não lhe cravara os caninos saltados, como pareceria óbvio esperar. Ela fincou-lhe os dentes incisivos uma força descomunal, e arrancou-lhe um bom pedaço do pescoço. Se houvesse sangue, lhe jorraria aos montes, com certeza.

  Mas, muito rapidamente, a dor passou. Algo que Michelle fizera provocou uma dormência agradável, que se difundiu dali para todo seu corpo. Emílio não entendeu, imediatamente, o que lhe ocorria. Sentiu, mesmo, um sono devastador. Mas, antes que ele se pudesse entregar à sonolência, ela o chamou.

  - Não durma, ainda, mon amour. Você precisa viver!

  Ouviu-se um forte estampido vir lá de fora. Mas ele mal parecia ouvir. Estava entorpecido por alguma substância que ela parecia ter-lhe inoculado, e mais ainda pelo poder daquelas palavras. Ela o amava, então?

  Adão chegou ao quarto apressadamente, como quem subira as escadas em um só passo. Emílio jamais vira tal expressão de pânico em sua face. Na verdade, Emílio jamais vira qualquer expressão naquela face, e justo o pânico não era bom augúrio. Ele já chegou falando, antes mesmo de poder ver o que se passava.

  - Lionel está entregue, Eva! Vamos!

  Só então, Adão viu que estavam completamente despidos. Não entendeu nada. Eva apertava fortemente Emílio, quase adormecido, entre seus braços. Adão tentou apressá-los. Era momento de correr, pois seus algozes subiriam rapidamente, vasculhariam toda a casa, e não deixariam passar nada.

  Emílio não encontrava forças para se levantar. Michelle sentia isto, e parecia sofrer, pois não queria perdê-lo. Ela levantou-se, enrolou o rapaz com um cobertor, e saíram, juntos, por uma passagem secreta que levava a uma outra saída subterrânea que ninguém mais conhecia. Era uma rota de fuga difícil de ser descoberta e quase impenetrável, destinada originariamente a proteger o Grande Líder. O segredo desta passagem houvera sido revelado para a fuga de Adão e Eva, após o cumprimento desta missão.

  Mas não era possível se arriscar. A passagem subterrânea era estreita, e Eva carregava Emílio com muita dificuldade. Ao sair, encontraram-se em uma caverna, cercada por uma densa mata. Este pedaço tão encorpado da floresta, praticamente intranspassável, pertencia à propriedade, e fazia parte da rota de fuga. Os raios solares não chegavam aos planos mais baixos. Mas não era possível carregar ninguém por lá. Era preciso muito jogo de cintura para passar por entre os galhos e raízes.

  Não podendo mais seguir, Michelle sentou-se em uma pedra, acolhendo Emílio em seu colo. O corpo desfalecido, tão amorosamente amparado, e a expressão de sofrimento de Michelle, tudo remetia à imagem de la pietà*. Adão hesitou um instante, pensando em esperá-la. Mas percebeu que ela não viria. Emílio agonizava. Sua jugular e os órgãos em derredor cessavam, lentamente, o processo regenerativo. Ele parecia estar nos últimos instantes. Àquela altura, Lionel certamente já havia sido morto. Adão, é bem provável, já se aproximava do esconderijo definitivo, de onde somente partiriam à noite. Mas ela estava ali. A musculatura de Emílio começava a perder totalmente o tônus, como se ele se entregasse. Seu olhar, até então fixo na mulher que tanto amava, começava a se perder no espaço. Logo, seus olhos não foram mais capazes de se manter abertos. Michelle chorava copiosamente, pedindo que ele não partisse, que resistisse um pouco mais. Emílio revirava os olhos, umedecidos pelas lágrimas de Michelle.

  Tudo estava perdido. Todo o seu esforço havia sido em vão. Ela, decididamente, não nascera para o amor. Em toda a sua vida, amara apenas um homem, com quem se casara, antes mesmo de se tornar vampira. Ele era um nobre, que a amou genuinamente. Mas ela era uma serva, e esta união incomodou muita gente. Eles teriam que ser retaliados. E foram. Ainda na noite de sua lua-de-mel, antes que pudesse ser consumado o casamento, ele morreu em seus braços. Ela se perguntava o por que de tudo isso. Em toda sua existência como vampira, recusou-se a se entregar à paixão, ao amor. Jamais se permitira, jamais sentira, sequer, falta disso. Mas, agora, amava novamente, de maneira irremediável, e não podia fugir disso. E ele estava condenado à morte. Morria, agora, em seus braços.

  Michelle Delacroix via passar um filme, em sua mente. Lembrava de como herdara seu belo sobrenome de seu marido, um nobre de família cristã, na época em que este credo começava a se alastrar. No dia do casamento, quando iniciava a festividade, o casal estava prestes a sair à francesa, para desfrutar dos prazeres das núpcias. Foi quando chegaram os poderosos senhores daquelas terras, acompanhados de sua guarda, para levar Michelle. Alegavam ser ela uma serva,e exigiam o droit de cuissage**. Armand Delacroix estava sujeito, com isso, à vergonha pública, pois um nobre não era obrigado a experimentar tal humilhação. Mas não era isso que lhe incomodava. Recusou-se a sujeitar sua tão amada esposa a tal degradação. Empunhou sua arma, e, junto a toda comunidade, resistiu. Poucos sobreviveram, poupados apenas para recontarem a história. Todos precisavam saber o que acontecia a quem mancha o nome nobre de sua família ao desposar alguém inferior. Em seus braços. Ele morrera em seus braços. Esta imagem não lhe saía da cabeça. E seu novo amor morria, novamente, em seus braços, também vítima da intransigência de outrem. Doía-lhe no peito a certeza de que jamais poderia amar, sem por isso ter de suportar o peso de ver morrer o seu amado.


  Michelle sofria, calada, olhos fehados, as lágrimas lhe escorrendo abundantemente do rosto, por seu destino tão cruel. Um repentino e violento espasmo a trouxe de volta à realidade. Emílio começava a reagir. Tremia de frio, dentro das cobertas ensopadas pelas lágrimas de Michelle. Seu pescoço já estava quase que completamente regenerado. O choro de Michelle, agora de emoção, foi redobrado. Ela o salvara! Funcionara! Ele acordava fraco e atordoado, sem compreender o que se passava em derredor.

  Um ruído já esperado por Michelle se fez ouvir. Queria dizer que funcionara um outro plano que ela articulara em segredo: Adam, o líder da Acção, os seguia. Despontaria na passagem secreta muito em breve, o covarde, e certamente não contava com a presença deles. Ele sempre foi muito impulsivo, o que fazia dele um péssimo caçador de vampiros. Aquele texano conservador, racista, branco da face rosada somente chegara ao poder dentro da Acção através de muita corrupção, e se auto-denominava o maior inimigo dos vampiros de toda a história. Ele se aproximava cada vez mais, e Michelle olhou Emílio nos olhos, como quem dá uma ordem firme. Ainda atordoado, quase inconsciente, Emílio avançou sobre Adam, antes mesmo que pudesse vê-lo. Nem bem era capaz de perceber o que fazia, já havia arrancado um naco de carne do pescoço de Adam, deixando à mostra a carótida direita. Ele parecia saber como agir, mas estava fraco demais para compreender o que fazia. Concentrava toda sua energia em agir, não em pensar, enquanto Adam ainda começava a tomar consciência do que lhe ocorria. Michelle, por sua vez, dava cada instrução, com um olhar firme, quase agressivo. Adam tentava reagir, mas havia sido pego de surpresa, e deixara cair no chão tudo o que poderia usar para se defender. E não era páreo para a força de um vampiro. Jamais seria. Emílio rasgou com capricho a exposta artéria pulsante de Adam, e provou de seu sangue. O sabor não tinha nada de extraordinário, mas a sensação de prová-lo era indescritível, única. Michelle o orientou a deixar a saliva se misturar ao sangue, ainda dentro da artéria de Adam. Ao fazê-lo, sentiu, misturada à sua saliva, alguma substância refrescante. Era uma substância anticoagulante, com potentes propriedades analgésicas, que ele introduzia no corpo de Adam, eliminando sua resistência.

  Dos ouvidos de Adam, e de sua gengiva, começaram a escorrer finos fios de sangue. Seus olhos, até então saltados, também vertiam o líquido encarnado, como se ele chorasse sangue. Neste momento, Emílio percebeu o que fazia com aquele homem, para ele, desconhecido. Quedou-se horrorizado com o mal que provocava a alguém cuja existência, simplesmente, ignorava até aquele momento. Quis parar, mas não conseguia. O sangue daquele homem lhe parecia corroer a consciência, ou seu auto-controle, mas ele se sentia fisicamente fortalecido, como jamais se sentira. Era inebriante, perturbador, até, a sensação de urgência que começava a sentir por sorver cada mínima gota. Com muito esforço, conseguiu parar.

  - Beba até o fim, Emílio!
  - Não posso!
  - Beba, logo! Vá!
  - Mas, isso vai matá-lo!
  - Ele veio atrás de nós, para nos matar, Emílio. Vamos! - Emílio resistia - Se não matá-lo, ele se transformará em um vampiro muito perigoso, e vai nos perseguir até acabar com todos nós! E será um vampiro ligado às suas energias vitais! Vamos, Emílio, logo! Se você deixá-lo ligar-se a você, em breve não terá mais força para sobreviver, você está fraco demais! Mate-o! - Emílio sugava, ainda hesitante - Isso! Beba o sangue, isso vai fortalecê-lo para podermos fugir.

  Mas, no último instante, Emílio fraquejou. Não teve coragem de matar aquele homem. Eva - neste momento, não era Michelle quem agia - desferiu um golpe rápido contra aquele corpo que jazia, arrancando-lhe a cabeça. Lançou os restos mortais para o meio do mato, onde sabia que algum animal selvagem faria dele sua refeição. Emílio, embriagado por tantas sensações, acompanhou com o olhar surpreso cada movimento daquela mulher impressionante.

  - Vamos, agora você está fortalecido. Acho que consegue vir!

  E ela desapareceu no meio da densa mata. Ele correu atrás, seguindo o próprio olfato, reconhecendo a fragrância natural que jamais confundiria em sua vida. Logo, não era possível a qualquer ser vivente encontrá-los.

  Adão aguardava a chegada de Eva, mas não contava com a aparição de Emílio. Completamente perplexo, espremeu-se mais para o canto, e os recebeu dentro do estreito abrigo.


Pablo de Araújo Gomes




Breve glossário:

* "La Pietà", em português, "A piedade". Representação comum em artes visuais, na Idade Média, Jesus morto nos braços da Virgem Maria. A versão a que se refere o texto, precisamente, é também a mais célebre de todas: a escultura perfeitamente acabada por Michelangelo, aos 23 anos de idade, no período do Renascimento, e que hoje agiganta a Basílica de São Pedro, no Vaticano, onde repousa.

** "droit de cuissage" (na França), ou "primae nocte" (na Europa em geral). Considerava-se que todos os servos pertenciam ao seu senhor. Decorrente desta concepção, apoiada, inclusive, no posicionamento da igreja católica, surgiu um hábito medieval, segundo o qual, na primeira noite após o casamento (a lua de mel), a noiva pertencia ao Senhor Feudal, que a defloraria, ele mesmo. Em algumas regiões, chegaram a ser promovidas verdadeiras orgias, envolvendo muitos nobres, que devolviam, apenas, uma mulher traumatizada, retraída, usada e humilhada, por vezes à beira da morte. Muitas mulheres casavam-se de preto, em protesto, e muitos casamentos eram realizados em segredo. Mas os próprios clérigos, aliados da nobreza, muitas vezes deduravam estes casais, que eram severamente punidos.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Capítulo VI - Aguardando Visitas

     - EVAAAAAAAAA!!!

     Assim, com um grito, como alguém que acorda de um pesadelo terrível, Emílio despertou. Tinha, à sua volta, Lionel, que lhe fazia uma compressa de água fria, e Adão, que não tirava os olhos de Lionel.

     - Nunca vi um vampiro ter febre. - Emílio tentava se recompor. Olhava, assustado, para Lionel, que seguiu falando com uma calma ironia, quase insuportável. - Aliás, meu caro, a sua temperatura corporal teria sido uma sentença de morte para qualquer um. Nunca ouvi falar em nada parecido.

     Adão pareceu assentir, observando tudo quase curiosamente, mas sempre inexpressivo. Lionel continuou.

     - Hummm... a julgar pela camisa rasgada, e pela sua temperatura, parece que as coisas foram bem quentes, por aqui... Ah! Perguntou pela sua nova "madrinha"? Ela já partiu, antes que qualquer um pudesse esperar. Ninguém a vê, desde ontem. Ou será que ela apareceu para alguém?

     Por trás da pergunta, escondia-se um certo escárnio, fosse por pura ironia, fosse por sentir inveja de algo, ainda que lhe parecesse improvável que ela houvesse aparecido. Vendo Emílio calado, desconcertado, Lionel arriscou, ainda, uma nova pergunta.

     - O que você queria com ela?
     - Nada, não!
     - Você mente muito mal, rapaz. Pode me dizer!

     Emílio sentiu uma vontade irresistível de revelar tudo. Aquele olhar de Lionel, ou talvez o seu toque paternal, ou qualquer coisa nele fazia com que Emílio se sentisse completamente entregue ao controle de seu novo amigo. Devia ser a influência de que alguém havia falado. Não conseguiria mentir, de forma alguma. Mas, algo lhe surpreendeu: ao pensar em Eva, conseguiu calar-se.

     Lionel olhou com mais intensidade, já intrigado. Seu olhar e seu toque deveriam exercer um poder quase hipnótico sobre Emílio. Por que não acontecia nada? Algo estava fora do normal, certamente haveria qualquer coisa fora da ordem. Com o olhar, Lionel parecia entrar nos olhos de Emílio, como a perscrutar qualquer pensamento. Mas, nada lhe ocorria. Não conseguia ler seus pensamentos, nem ouvi-los.

     - O que está fazendo?
     - Procurando o que há de errado.
     - Como assim? Algo deveria estar errado?
     - Esqueça!

     A resposta foi fria, quase ressentida. Lionel sabia que deveria ter poder quase ilimitado sobre a mente de Emílio. É o que acontece quando se transforma alguém. Lionel não apenas se recusava a aceitar aquilo, como jamais poderia revelá-lo. Era algo sem precedentes perder o poder de influenciar seu pupilo com menos de uma semana. Esta capacidade costumava perdurar por muito tempo, mesmo depois que a vida do recém transformado alcance a independência. E apenas muito lentamente se diluía.

     Este pensamento provocou-lhe um profundo arrepio na espinha, como não sentia havia décadas. Se o jovem rapaz alcançasse a independência, logo ele mesmo perderia qualquer proteção. Mais do que isso, ele teria criado um monstro. Ninguém alcançava tamanha independência em tão pouco tempo! De que seria capaz? Não era algo aceitável, provavelmente seriam ambos mortos o quanto antes.

     Emílio interrompeu seu raciocínio.

     - Quando você vive, a morte não existe. Quando a morte existe, você não.
     - O que?
     - Demócrito dizia isso, não é? Ele acreditava que nossa alma se dispersa em átomos para formar outras almas. Acontece com o nosso corpo, disso já sabemos. Bem, a nossa alma não se dispersa, mas, agora isso já não interessa, porque não a tenho mais.
     - Aonde você quer chegar com isso, garoto?
     - Lugar nenhum. Lembrei-me do dia em que você me transformou. Você disse que tudo ia acabar, mas só para mim. Mas, não vai haver um "eu" para sentir falta da vida. Se eu sou apenas um conjunto instável de átomos, então, qual o problema que eles se dispersem? Morrer já não me parece tão mau...
     - Você está depressivo, garoto? - perguntou Lionel, enquanto examinava o seu paciente.
     - Não, eu quero viver. Só não vejo mais problema em morrer. Não temo a morte. Não vou conhecer a morte.
     - Você já não tem mais febre. - e continuou, após certo silêncio - Então, você não vê mais problema em morrer?
     - Não. Algo em mim me diz para sobreviver, para lutar pela vida...
     - Seu instinto de sobrevivência, claro.
     - Que seja! E eu acho que irei obedecer a esta ordem. Mas, se a morte vier, que venha!
     - Não chama, que ela vem! Ela já está nos procurando, lembra?

     Ambos riram às gargalhadas, cúmplices, sem entender exatamente qual era a graça. Sabiam do que estavam falando, e se entenderam, ao se entreolhar, após todo o riso. Deveriam lutar por suas vidas. Lionel convidou Emílio a saborear algum vinho na Sala de Estar, enquanto aguardavam a chegada dos dirigentes da Acção, mas Emílio não demonstrou muito interesse. Um tanto inseguro, Lionel tentou induzi-lo a aceitar a proposta, e funcionou de imediato. Que alívio! Talvez, tudo não tivesse passado de um mal entendido.


     Enquanto Emílio se banhava, Lionel escolheu para ele um elegante smoking. Em cada quarto havia um guarda-roupas com roupas sob medida para o hóspede do quarto. Quase todas, dignas de serem usadas em uma cerimônia do Oscar, em Hollywood.

     Lionel foi para o seu quarto, banhou-se e se vestiu com uma velocidade surpreendente. Quando prontos, saíram ele e Emílio, rumo à Sala de Estar. Atrás deles, o olhar atento de Adão não lhes deixava escapar o mínimo gesto. Emílio, quase constrangido, tentou estabelecer algum contato.

     - E você? Não se chama Adão, se chama?
     - Não posso responder.
     - Vamos, guardo o segredo. Como é o seu nome?
     - Nomes e biografias reais só são permitidos a iniciados.
     - Mas, me aprovaram no conselho, ontem, não aprovaram?
     - Condicionalmente.
     - Como assim, condicionalmente?
     - Meu caro, - Lionel tomou a palavra - você foi aprovado, sim, mas só se a proposta de Eva der certo. Ainda assim, mesmo que dê certo, nada pode ser feito até a sua efetiva iniciação.

     Poder-se-ia dizer que Adão sorriu, se ele por acaso sorrisse. Mas, inexpressivo como sempre, deixou passar um certo ar de satisfação. Aquele interrogatório o incomodava bastante, e Lionel percebera isto. Por isso, mesmo, tentou dar o assunto por encerrado.

     Chegando na Sala de Estar, havia uma verdadeira recepção instalada, como se esperasse um grande evento de gala. Distribuídos no ambiente, dezenas de pessoas, todos vampiros. Cada qual olhava mais secamente para os recém-chegados. Era, no mínimo, desconcertante, e uma sensação de angústia tomava Emílio violentamente. Percebendo isto, Lionel usou de sua influência para tranqüilizá-lo. Lionel, sim, era suficientemente cínico, a ponto de não ligar para os olhares. Já estava acostumado a ser a ovelha negra do rebanho, havia muito tempo.

     Com a ajuda de Lionel, Emílio pôde saborear detidamente cada um dos vinhos da casa, ignorando os olhares corrosivos dos presentes. Experimentou cada sensação, e os acompanhamentos indicados. A certa altura, Emílio reconheceu o sabor familiar de um vinho em particular.

     - Este é o mesmo vinho que eu guardava em casa...
     - Um primor, não é?
     - Excelente! Mas, como eu posso reconhecer?
     - Alguns enólogos reconhecem...
     - Sim, gosto de vinho, mas estou longe de ser um enólogo.
     - Sei, sei. Por isto estou apresentando cada sabor em particular. Prove este, agora.

     Emílio prova o vinho vermelho. Acha-o delicioso, mas questiona.

     - E, por que você está fazendo isso?
     - Diga-me o que achou do vinho.
     - Muito bom.
     - Não. Descreva-o.
     - Ele é bem encorpado, tem baixa acidez, lembra aquele Bordeaux, que você me mostrou há alguns minutos, mas é levemente diferente...
     - Prossiga...
     - A concentração é soberba, sem dúvida, mas não é doce demais. - Lionel fazia um gesto que continuasse - e... deixe-me ver... - tomou mais um gole - além de tudo, é suave, passa aveludado pela boca... mas, por que você quer saber de tudo isso?
     - Perfeito! Você deu a descrição que um especialista daria a esta safra do Opus One. Faria isto, antes de se tornar vampiro?
     - Claro que não!
     - Entende, agora, por que lhe apresento os vinhos? São seus sentidos, meu caro. Seus sentidos estão bastante apurados. É hora de experimentar o mundo, de aprender o que é bom!

     Emílio parecia finalmente se entregar ao evidente hedonismo de Lionel, e deliciar-se mais e melhor com os vinhos. Aprendia, também, a lidar com os olhares, por conta própria. Ou com ajuda dos vinhos, tanto faz. Mas, quando tudo começava a parecer calmo e sem maiores expectativas, chegou Michelle Delacroix, como um tufão. O olhar grave, um ar urgente, vinha como quem chegasse do nada, e concentrou os olhares interessados de todos os presentes.

     - Todos, à sala de reunião. É urgente!

     Sem pânico, mas com uma evidente pressa, todos seguiram-na até a sala de reunião. Dentro da sala, todos pareciam saber onde se sentar, embora a escolha dos lugares fosse, para a maioria, aleatória. Assim, logo estavam todos reunidos e acomodados. A Srta. Delacroix não esperou mais do que isso para começar a falar.

     - Eles não vêm para a reunião. Eles vêm para um extermínio. Querem começar pelas lideranças, que sabem estar aqui. Querem nos desarticular, para facilitar a caçada. Descobri, ainda, que os planos não são novos, nós apenas demos a ocasião.

     Em outra ocasião, ouvir-se-ia um burburinho tomar o ambiente. Houve, no entanto, uma intensa troca de olhares. Olhares cortantes, capazes de matar alguém, dirigiram-se para Lionel. Alguém se pronunciou.

     - Quem poderia ter sido tão ingênuo, a ponto de acreditar que haveria acordo?
     - Todos nós acreditamos! - Alguém interveio.
     - É verdade, mas, agora já é tarde para tal. Precisamos decidir o que fazer. - Declarou sabiamente a Srta. Delacroix.

     A resposta veio quase em uníssono. A decisão geral era o que se podia esperar. Entregar-se-ia Lionel.
     Eva não revelara onde ficava a Sede do Conselho no Brasil, mas eles logo descobririam. A ordem era evacuar, e deixar apenas Lionel e o jovem rapaz. Ou levar o rapaz, não faria diferença. Ele estava previamente condenado à morte.

     Eva e Adão ficariam responsáveis por garantir que os dois vampiros não saíssem, e estariam livres para fugir quando tal missão estivesse cumprida. "Alea jacta est"*, pensou Emílio, talvez acompanhando inconscientemente o raciocínio de Lionel, que balbuciava algo como "Le scommesse sono state effettuate..."**. Mas, calada consigo, a Srta. Delacroix não parecia estar disposta a deixar tudo a cargo da sorte. Algo deveria ser feito. E seria.


Pablo de Araújo Gomes





A Pedidos, breve glossário:

* "Alea jacta est", latim, "a sorte está lançada", ou "os dados estão lançados". Esta frase é atribuída a Júlio César, quando teria ingressado com suas legiões em territórios em que não era permitido fazê-lo. A proibição se justificava no passado de golpes militares para tomar o poder em Roma. A versão mais cristanizada desta frase seria o popular "seja o que Deus quiser!".

** "Le scommesse sono state effettuate...", italiano, "As apostas foram feitas...". No contexto, ambos personagens pensaram a mesma coisa, mas traduziram o pensamento em diferentes palavras.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Bônus I - Delírios...

     Emílio ardia em febre. No quarto escuro, nada era capaz de ver, senão a porta se abrindo lentamente. Uma fragrância familiar adentrava suavemente em seu quarto, e ele quase era capaz de vê-la, ou saborea-la. Quase como levasse um choque elétrico, Emílio sente a presença marcante de alguém. Surge, sensualmente, um vulto na porta entreaberta. É uma mulher linda, perfeita, ruiva. A mulher dos seus sonhos. Sim, sim, é Eva. Ou, Michelle Delacroix, como preferir. Ela vem em sua direção, e o olor que exala o desperta violentamente, como um chamado da natureza para a urgente missão de salvar sua espécie.

     Emílio levanta-se, trêmulo, os braços estendidos para frente, como tentasse alcançá-la. Ela o empurra na cama, dominando-o. Despe-se vagarosamente, quase como numa dança. Quase, claro. Sua sensualidade tem um estilo que lhe parece completamente novo, despido de qualquer clichê. Emílio rasga as próprias vestes, em um gesto quase animalesco, com o qual fere o peito com suas unhas. Ela lhe contém o ímpeto de proferir um urro, puxando-o para si e roubando-lhe um beijo ardente.

     Ela avançou sobre o rapaz, como em um ataque felino, e assumiu o comando do fervente encontro de suas carnes, como fosse devorá-lo naquele mesmo instante.

     Emílio sentia o imensurável prazer em todas as suas cores e sabores. O fervor febril de sua pele não chegava a sobrepujar o calor interno daquela mulher cheia de mistérios e encantos. Todas as coisas assumiam formas que lhe pareciam impossíveis, inclusive o casal, que se fundia em um só corpo.

     Quando, em poucos instantes, as cobertas encharcadas de suor já pareciam entrar em ebulição, ambos já atingiam o ápice do prazer. Todos os músculos inumanamente retesados resistiram em relaxar, e a distensão de ambos os corpos lhes parecia fazer diluir nas águas de seus lençóis.

     Ela, neste instante, escorreu sorrateiramente, como o faria uma densa sombra, deixando, apenas, no ar, o perfume de seu prazer e medo, e, na cama, seu amante, que não parava de chamar o seu nome...


Pablo de Araújo Gomes

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Capítulo V - O Conselho

     Terminadas as escadas, os viajantes se viram em uma casa muito bonita. Não parecia, no entanto, mais que isso: uma casa muito bonita. A decoração antiga, de bom gosto, parecia carregar o peso dos anos que o próprio edifício não tinha. Mas em nada lembrava um local especial.

     Uma mulher muito simpática os recebeu, e os encaminhou para a espaçosa Sala de Estar onde se acomodaram confortavelmente no sofá. Todos, menos Adão, e Eva, que aguardavam, de pé, por um chamado. Não esperaram muito. Seguiram por um corredor, e não voltaram mais. Alguém ligou um aparelho de som, que Emílio não via. Ouvia, no entanto, uma música, um agradável som ambiente. Procurou de onde vinham, e percebeu que vinham de todos os lados. Havia discretas caixas de som, quase imperceptíveis, espalhadas pelo espaço, e o cômodo parecia ter sido feito para comportar a acústica ideal. Dominava-lhe a extraordinária sensação de ser possível nadar nas ondas sonoras da música tocada. Emílio reconheceu a música: ouviam Chopin.

     A mesma simpática mulher do primeiro momento retornou, e os convidou.

     - Os senhores queiram me acompanhar aos seus aposentos, por favor.

     Lionel foi levado a um quarto de duas camas, onde Adão o aguardava, com a missão de evitar sua fuga. Os gêmeos iriam a quartos individuais, mas pediram um semelhante ao de Lionel, no que foram prontamente atendidos. Emílio ficou com um quarto excelente, uma suíte. Descobriu, ainda, que ficava ao lado do quarto de Eva, e não pôde conter um leve ar de satisfação. "É muita sorte!", pensou. A casa, era maior do que parecia. Era um palacete, com dezenas de quartos. E havia muito mais que quartos, no palacete. O que denunciava não ser uma simples residência era o sem-número de salas destinadas a reuniões e questões administrativas.

     Emílio preparava-se para tomar um bom banho, quando alguém, subitamente - e sem pedir licença-, abre a porta de seu quarto. Escoltado por Adão, Lionel Giardini entra no quarto de Emílio gritando, com ar de zombaria.

     - Vamos lá, Emílio, o conselho já está reunido!
     - Eu iria tomar um banho, será que não...
     - Não, não dá tempo, não! Em que planeta você está? Eu disse que o conselho já está reunido, não que está a caminho!

     Lionel sai, seguido por Emílio, aborrecido, e por Adão, atento a cada movimento do irreverente Lionel. Estes entram em uma sala, mas fazem Emílio esperar. Minutos depois, ele é convidado a entrar. É uma sala grande, uma mesa de reunião ao centro, com uns vinte lugares. O seu está reservado, em evidência. Emílio senta-se.

     - Emílio, - começa a falar um homem em destaque, com sotaque acentuadamente francês - sabe por que estamos aqui?
     - Para ser sincero, não. Talvez...
     - Estamos quebrando quase todos os protocolos, Emílio, por conta da urgência da situação. Saiba, a priori, que, para todos os efeitos, nada disto está acontecendo. Você é capaz de guardar este segredo com a sua vida, Emílio?
     - Sim, senhor... - Respondeu prontamente Emílio, intimidado com a forte autoridade na voz de seu interlocutor.
     - Escute-me, então. Este Conselho Vampírico está extraordinariamente reunido porque foi quebrado um acordo de vital importância para a sobrevivência de nós, vampiros. Senhorita Michelle Delacroix, por favor, explique-nos, a todos, a situação.

     Para a Surpresa de Emílio, Eva se levantou e iniciou um detalhado relatório.

     - Senhoras, senhores, todos nós conhecemos... - hesitou, olhou para Emílio - Quase todos nós, aqui presentes, conhecemos a história dos vampiros, pelo menos a partir do renascimento de nosso grande líder. Sabem que, depois dos surtos de ataques realizados por vampiros no século XVIII, precisamos nos organizar para evitar a nossa extinção e garantir o convívio pacífico entre nós e os demais humanos. Emílio, nós nos organizamos em uma espécie de sociedade secreta, como a maçonaria ou os illuminatti, mas fora do conhecimento dos humanos não-vampiros. O que você vê aqui é um conselho internacional que, extraordinariamente está se reunindo no Brasil e em português, para que você possa acompanhar a a reunião. Como eu dizia, os caçadores de vampiros também se organizaram, formando a Acção Internacional para a Caça aos Vampiros, a AICV. Este conselho aqui presente, órgão máximo de nossa organização, realizou um acordo com a AICV, de não matarmos mais humanos, e criar um controle rigoroso das vampirizações, para garantir que nós, vampiros, não nos alastrássemos demais na terra a ponto de perdermos o controle sobre nossos semelhantes. Em troca, eles poderiam treinar os seus melhores caçadores, mas somente matariam os vampiros degredados, situação em que faríamos tudo para facilitar. Criou-se uma relação simbiótica entre as duas sociedades. A novidade é que, após os últimos quase trezentos anos de sucesso no cumprimento do acordo, acabamos de descumprir nossa parte, e a AICV, sob nova direção, aguardava apenas o mínimo deslize para recomeçar a caçada.

     - Qual foi o específico descumprimento do acordo? - perguntou um dos líderes presentes.

     - Não permitimos que matassem Lionel Giardini, senhor. Esta infração já foi fruto de uma outra: o Sr. Giardini vampirizou um jovem não iniciado. - os olhares seguiam na mesma direção em que a mão da Srta. Delacroix apontava, qual seja, na direção de Emílio -  Em um dia, apenas, Senhor, descumprimos os dois mais importantes termos de nosso trato. Mas, se entrarmos em guerra declarada contra a Acção, eles certamente, sendo a sua nova diretoria tão capiciosa, acabarão com nosso segredo, e tirarão proveito da opinião pública a respeito. Seremos, novamente, demonizados, e irremediavelmente caçados!

     Todos a escutavam, e examinavam Emílio com um olhar penetrante. Era preciso tomar uma decisão, isso era óbvio. Mas, o que vazer? Deixar que matassem Lionel significava permitir a morte de um inocente. Mas recusar-se a tal poderia desencadear uma caça generalizada. Não era preciso ler pensamentos, para entender qual era a opinião geral. Deveriam entregar Lionel, mesmo que isso representasse o óbvio sacrifício de Emílio.

     - Mas, senhores, - interveio a Michelle, notando para onde rumavam os pensamentos - embora pareça-nos óbvia a resposta de nosso enigma, peço-lhes que poupem o jovem rapaz. Ele não pediu para ser vampiro, sequer teve escolha. Podemos realizar, postumamente, todos os passos para a iniciação, e obedecer a ritualística. Há alguma razão para ele estar entre nós, alguma razão que ainda desconhecemos, mas há algo que me diz que ele será importante para nós.

     - Você está propondo, Srta. Delacroix, que corramos o risco de uma guerra que seria mortal para todos nós? Ele está entre nós porque Lionel é um irresponsável, ou porque ele é maquiavélico o suficiente para usar o garoto para se salvar.

     - Mas, ele é um inocente. - apontava, novamente, para Emílio - Vocês conhecem o juramento que todos fizemos!
     - Todos nós somos inocentes, Srta. Delacroix. E, lembre-se, só quem teria condições de apadrinhar o jovem, para ele ser iniciado, é quem o transformou. No caso, um degredado, que nem mesmo poderia estar aqui nesta sala, conosco.

     - Eu o apadrinho, Senhor, e farei de Lionel meu instrumento para tal. E, mais uma coisa, podemos evitar esta guerra. Manteremos Lionel Giardini prisioneiro, de modo que ele estará impedido de fazer qualquer besteira, e o entregaremos pessoal e diretamente aos caçadores.
     - Conhece os riscos de tais promessas, Srta. Delacroix?
     - Sim, Senhor!
     - Assume estes riscos? Responsabiliza-se pessoalmente por esta missão?
     - Sim, Senhor!
     - Ousa, mesmo, seguramente, arriscar seu cargo, sua posição e prestígio, com esta missão? Pior, sabe que, se arrisca sua palavra em nome do conselho, põe sua cabeça à prova, diante deles.
     - Estou ciente de tudo, sim, Senhor.

     Todos da mesa se entreolharam, insondáveis. Emílio não entendia, mas, antes que entendesse, o líder da reunião retomou.

     - Vós conheceis as regras e protocolos da casa, vós votastes, e anuncio o veredicto. Eva irá, escoltada por Adão, reunir-se com a diretoria da Acção Internacional para a Caça aos Vampiros. Se o acordo for firmado, será conforme o proposto. Caso contrário, sacrificaremos o jovem, para salvar-nos a todos, entregando o Sr. Giardini. Se você tem certeza do que está fazendo, Srta. Delacroix, está autorizada. A que horas pretende partir?
     - Logo ao amanhecer, senhor.
     - Mas, sequer anoiteceu. Não acredita que sua demora provocará a ira da Acção?
     - Fontes seguras me informaram que eles estão a caminho, senhor. Até o amanhecer, não há como saber onde se hospedarão.
     - O que vêm fazer no Brasil?
     - Certamente, souberam desta reunião extraordinária, senhor. Mas, não conseguiram chegar em tempo hábil para estarem entre nós. Irei como mensageira, para avisá-los que apenas os aguardamos para nos reunirmos, e os guiarei para cá.
     - Eles irão preferir algum lugar mais neutro. Aqui, estarão muito vulneráveis.
     - Senhor, eles vêm em grande número. Não seríamos páreo para eles, caso algo acontecesse, e eles sabem disso.
     - E por que, então, nos propõe que nos arrisquemos a tal ponto?
     - Temos um trunfo, senhor. Nós os dividiremos.

     Novamente, os olhares. Será mesmo possível que estivessem debatendo algo?

     - Assim seja feito, Srta. Michelle Delacroix. Todos estão de comum acordo.

     Cada qual se recolheu para o seu quarto. O cheiro da adrenalina era sufocante. Os olhares dirigidos a Emílio, também. Lionel, perceptivo como só ele, acalmou seu jovem pupilo, e o encaminhou a seu quarto.
Emílio deitou-se, febril, e dormiu pesadamente.


Pablo de Araújo Gomes

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Capítulo IV - Rumo ao Conselho

     A Van era bastante espaçosa, e acomodava a todos com conforto. O veículo, negro como a noite, tinha as janelas impenetráveis, incapazes de deixar entrar a mínima luz. Era tão hermeticamente fechado que, para haver alguma comunicação entre o motorista e os passageiros, utilizava-se um pequeno aparelho, semelhante a um interfone. O motorista ficava só na sua cabine, e claramente não era vampiro. Algo nele denunciava isso, e ele parecia sinceramente nada saber a respeito da existência de vampiros.

    Entraram, então, na parte de trás, que era, em condições normais, completamente isolada da luz exterior. Mas, sendo então noite, descerraram as hermeticamente fechadas janelas, para o ar entrar. Emílio, mesmo bêbado, deliciava-se com o coquetel de cheiros que vinha da rua. Quis botar a cabeça para fora, como faria um cachorrinho de estimação, mas Eva não deixou. "Ele acaba se matando, antes de chegar ao conselho!", disse, apenas.

     Lionel, pensativo, já começava a perceber como era importante se tornar amigo do rapaz. Gostava de sua liberdade, e queria reconquistá-la, diante do conselho. Mas tornar Emílio um vampiro novato benquisto perante os superiores, um novo membro da comunidade, o salvaria de serem jogados, juntos, à própria sorte. Puxou Emílio para si.

     - Sou responsável por ele, sim? - falou, em tom enigmático.

     De fato, Lionel era responsável por Emílio. E, este, muito dependente daquele, em quase todos os sentidos. Sua vida - a de Emílio - simplesmente dependia da sobrevida de Lionel. E há mais. Um veterano que vampiriza alguém pode ser capaz de exercer influência e sedução inequiparáveis sobre o novato, geralmente tornando-o uma espécie de pupilo ou seguidor para até além de conquistada a independência.

     Lionel, após o aparente desinteresse dos primeiros momentos, começava a encarar esta dependência de Emílio, e sua influência sobre ele como um meio de vencer os riscos que se somavam nos últimos tempos. Fazer uso desse contexto era a garantia de sua sobrevivência e segurança, por mais algum tempo.

     Induzido por Lionel, Emílio dormiu pesadamente. Quando o dia quis raiar, todas as janelas foram fechadas, para evitar a entrada da luz do sol.

     Emílio acordou, a cara amassada, desconfiado. A custo, reconheceu, a vista embaçada, os novos amigos, e se deu conta da viagem. Encolheu-se, envergonhado, ao lembrar do papelão de sua embriaguez. Perguntou onde estavam, mas ninguém lhe respondeu. Todos dormiam, na verdade, dentro do carro, e Emílio ficou surpreso em poder enxergar tão bem, naquela escuridão.

     Emílio olhou para Eva, e tentou se recompor, para não fazer feio. Nossa, como ela era linda! Ele não era capaz de resistir. Ela cochilava, recostada à janela fechada.  Quase se lhe podia atribuir um suave sorriso nos lábios, enigmáticos. Digna do mistério atribuído à Mona Lisa, mas muito melhor. Ela era realmente o foco de sua atenção, dormindo tão graciosamente que lhe parecia impossível.

     Jamais ouvira falar em anjos ruivos. Na verdade, já estudara que os cabelos cor de fogo já foram muito associados à ação ou presença do diabo, e às bruxas, no decorrer da História. Mas, se houvessem anjos ruivos, teriam aquela aparência. Seu rosto era delicado, não magro e anguloso, como tentam fazer crer os padrões de beleza do mundo da moda, mas curvo, quase redondo. Sua carnuda maçã do rosto era tão suave, que quase lhe pareceria ruborizada, não fosse uma vampira. Ou seria a escuridão? Ele gostava de suas sardas, também. Elas lhe conferiam um charme especial. Seu queixo era igualmente delicado. Já os olhos, grandes, mas plenamente proporcionais a suas formas, lhe davam um ar de plena juventude. Ela pareceria um bebê, não fosse o ar sério e maduro dos momentos mais graves, ou o ar quase lascivo que carregava quando, às vezes, ficava pensando, distraída, a morder os lábios.

     Ele não resistiu e se aproximou. Inspirou profundamente, quase um palmo de distância, ao sentir aquele cheiro inexplicável. Ele reconheceu, na sinfonia que formava seu cheiro, algo que não sabia conhecer. Era o cheiro de mulher, de fertilidade, talvez do próprio cio. E havia mais, mas não conseguia distinguir, por mais que a cheirasse, detidamente.

     Seus olhos se perderam, novamente, nos belos seios sardentos, pois sua nova posição favorecia um olhar mais detido. Encantadores! Era o mínimo que se podia dizer. Evitando a tentação de despi-los, subiu o olhar até encontrar a boca carnuda, bem desenhada, super feminina. Havia batom nela, ele pôde perceber, mas não era chamativo. Parecia, mesmo, querer restituir a aparência natural, por sobre a palidez natural de vampira, pois era de um vermelho que parecia ter sempre estado ali. Como poderia saber? Havia tão pouco tempo que a conhecera.

     Quase não resistindo à tentação de beijá-la, sentindo sua respiração fresca, ele iria fechar os olhos. Iria, se não houvesse sentido a intensidade quase abrasiva, com que dois olhos furiosos lhe observavam. Era ela, que acabara de acordar, e o fuzilava com o olhar. Ele não tinha como se desculpar. Calado estava, e assim ficou, a própria respiração tornando-se difícil.

     Quando ele já não olhava, ela chegou a sorrir, satisfeita. Talvez pelo efeito de seu olhar, pois realmente se incomodava com a invasão do rapaz; talvez, tinha que admitir, por pura lisonja, por provocar um efeito tão devastador sobre o belo jovem. Neste caso, explica-se a rapidez com que desfez a expressão alegre do rosto. Não dormiria mais, pensou. E ele sentiu, ainda mais forte, o desconcertante cheiro de mulher tomar o carro fechado. Seria sua imaginação? Ao seu lado, Lionel abria um sorriso quase venenoso de tão libertino.

     Na verdade, Lionel começava a despertar, atendendo ao chamado daquele odor que o maravilhava. O carro fechado estava concentrando no ar o grito dos hormônios femininos, deixando Eva desconcertada, e diluindo as incertezas de Emílio.

     - Nem pense! - Eva apontou furiosa o dedo para Lionel.

     Ele, que fizera menção de se aproximar, recuou e ficou na defensiva, como um gato acuado, preparado para dar um bote. Eva era muito mais velha que ele, e gozava de muito respeito e autoridade diante de quase todos. Tocá-la sem sua permissão era a chave para perder qualquer apoio no conselho. Na medida em que a tensão tomava o espaço, diluía o aroma inebriante de luxúria, e o efeito que ele exercia sobre Lionel. Mas, Emílio, diante daquela confusa mistura de adrenalina e feromônios, parecia cada vez mais estar prestes a perder o controle.

     Quando a situação estava definitivamente insustentável, o carro reduziu a velocidade, e desceu, suavemente, uma longa rampa. Parou. Subitamente, após poucos segundos, a porta do veículo se abriu. Era o motorista. Haviam chegado. Emílio saiu, rapidamente, do carro, e se deparou com uma garagem enorme, com mais duas vans semelhantes, e um carro esporte, todos escuros, aparentemente para disfarçar os vidros intranspassáveis pela luz.

     Entre uma e outra vaga livre, da vasta garagem, Emílio andava, as pernas bambas, um instinto violento lhe tomando o corpo, combinando uma fúria que nunca sentira e a intensa luxúria que não o deixava. Lionel correu para junto dele, tocou-lhe um ombro e o acalmou com um olhar que poderia muito bem ser descrito como lúgubre. Emílio o abraçou, num sentimento confuso, que misturava a experiência negativa do vinho e as informações negativas que sabia sobre ele a um sentimento que atribuiria a seu pai, se o houvesse conhecido.

     Adão, Caim e Abel acordavam e saíam do carro, quando se depararam, surpresos, com a inesperada cena. Uma porta se abriu. Dava para uma escada simples. Foi fácil deduzir que estavam no subterrâneo. Emílio observava os olhares quase reverentes de seus pares, ao subir os três lances de escada, e compreendeu que já estava na sede do conselho. A viagem terminara.

Pablo de Araújo Gomes