sábado, 27 de março de 2010

Suspensão das atividades

     Sinto informar, caros leitores, que as circunstâncias me compelem a suspender as atividades deste blog por uns tempos, devendo retomá-las tão logo seja possível. Apesar do inconveniente, espero que compreendam, e vejam nisto uma oportunidade para reler os textos publicados e tentarem decifrar o mistério que ronda Emílio e seus novos amigos.

Grato pela compreensão,
Pablo de Araújo Gomes

sábado, 20 de março de 2010

Capítulo X - A Nova Missão de Eva

     Emílio acordou com o som de chaves. Após alguns segundos, tentando se situar, identificou onde estava. Estava na casa do senhor Katze, e eram as suas chaves que acordavam Emílio. Michelle já estava acordada, pronta para sair, e velava seu sono. Naquela casa, a cama de casal era a única coisa realmente grande. Não é à toa que ocupava quase todo o quarto. As roupas do simpático senhor eram guardadas em um baú, ao lado da cama. A sala era pequena, e possuía apenas uma poltrona e uma cadeira de balanço, ambos um tanto desgastadas. A cozinha era praticamente inexistente, e se resumia a uma pia e uma antiga geladeira quebrada, que fazia as vezes de armário. Era possível deduzir, com isto, que o senhor não passava muito tempo em casa. Um banheiro bem pequeno, rebocado com cimento, o acabamento mal feito, definitivamente não inspirava muita confiança em sua higiene. Era um casebre, por fim, bastante simples. E o melhor para Emílio e Michelle é que não tinha uma só janela. Somente pela porta da frente é que se podia entrar e sair, pois a minúscula casa se espremia timidamente entre outros três pequenos imóveis, certamente muito semelhantes a ela, naquela pobre vila construída há décadas, em um terreno invadido.

     - Levante-se, mon amour, e vista estas roupas aqui. Sairemos logo.

     Michelle entregou-lhe roupas bastante formais, dignas de serem usadas em uma reunião de negócios. Ele as tomou e se pôs a vesti-las. Herr Katze, bom anfitrião que era, servira uma modesta mesa que improvisara no meio da sala, e sentaram-se para jantar.

     - Sinto muito que não seja um banquete. - disse o Herr Katze, cerimoniosamente - Comprei o melhor jantar da região, mas receio que seja demasiado simples para vocês.
     - O que é isso, Sr. Katze? - respondeu, docemente, Michelle - Sabe que não faço cerimônia. Além do que, ter feito tanto por nós, sem precisar, já está de ótimo tamanho.
     - Faço-o com prazer, senhorita. Bem o sabes. - retrucou, ainda, o senhor, sorridente - Com o perdão pela ironia, você foi como um sol na minha vida. Pena que sempre demora tanto a vir me visitar, e logo não mais a verei.
     - Deixe disso. - Michelle parecia sentida, mas tentou falar com delicadeza - O senhor ainda tem muito tempo nessa vida, e ainda nos veremos muito.
     - Não estou muito convencido disso... - O simpático e sorridente senhor tinha lágrimas nos olhos, ao dizer isto, mas tentou manter a compostura - Comamos logo! O tempo corre, e não tarda a hora de vocês partirem para o aeroporto.

     Emílio, claro, não entendeu a profundidade deste breve diálogo. Desconhecia quem era o Sr. Katze Stern. Desconhecia que ele era, desde a juventude, apaixonado pela Srta. Michelle, que conhecera ainda na velha Alemanha Oriental, devastada pela recém-acabada Segunda Guerra Mundial. Ignorava, também, que era por ela que ele estava no Brasil, pois ao saber que ela para cá viajaria, e reparando quanto mistério ela fazia sobre as causas de sua viagem, suspeitou que Michelle fosse uma comunista, em missão revolucionária. Deste modo, também se credenciou para receber o treinamento e lutar pela causa revolucionária no Brasil. O então jovem Stern demorou a entender que Michelle não era comunista, e sua demora em percebê-lo lhe custou a liberdade. Foi preso político, e sobreviveu a duras penas, agora, ao regime ditatorial brasileiro, pouco tempo após ter sobrevivido a anos de violências e trabalhos forçados em campos de concentração nazistas. Foi Michelle quem o resgatou, e foi nesta época que ele conheceu "Eva". Somente assim, soube algo do grande segredo que ela guardava. Porém, se sua amizade somente crescia, por outro lado, ela parecia incapaz de se sensibilizar a seu amor. Por anos a fio, o jovem envelhecia, entre idas e vindas de sua amada. Muito tempo lhe custou acostumar-se à idéia de não tê-la jamais para si. Ela não era sequer como um pássaro que canta em sua janela, para alegrá-lo, e parte em seguida. Um pássaro pode ser capturado. Ela era como um sol que iluminava a sua vida, e depois partia, deixando tudo em total escuridão. Ele não poderia, jamais, conquistá-la.

    Michelle sentiu grande pesar, pois sabia que realmente não voltaria a ver seu grande amigo. Mas, mesmo tendo perdido o apetite, forçou-se a comer bem. Não podia fazer uma desfeita justamente no último dia em que se veriam, nem poderia deixar de se alimentar bem antes da longa viagem que os aguardava.

     Terminado o silencioso jantar, o Sr. Stern entregou-lhes dois passaportes, um pouco amarrotados. Pareciam ter sido usados por anos. Emílio não pôde conter o espanto ao perceber que os documentos eram seu e de Eva. Precisamente, do senhor e da senhora Dubois.

     - Como assim, Jean-Pierre Dubois? Eu não falo uma só palavra em francês! E como ele conseguiu a minha foto?
     - Você pergunta demais, rapaz. Eu peguei na sua casa, enquanto você tomava banho. Sabia que precisaria para alguma coisa, um dia. E não se preocupe. Você não vai precisar dizer uma só palavra. Faça-se de surdo, e eu resolvo o resto por você. Vamos?
     - E para que isso? Um brasileiro não viaja à França?
     - Você tem visto de turista? De estudante? Não. Émille Martin Dubois, dois dos três sobrenomes mais comuns na França, ninguém vai reparar em você. E seu biotipo e essa cara pálida ajudam um bocado.

     Eva despediu-se pela última vez de seu amigo. O abraço foi demorado, e teria sido mais, se não fosse o tempo a avançar impiedosamente a despeito deles. Não poderiam perder o avião. Michelle havia conseguido armar uma viagem realmente complexa, para que, com todas as pontes aéreas, eles estivessem sempre à noite. Dariam a volta ao mundo, entre uma e outra parada, trocariam de avião inúmeras vezes, e desembarcariam quase um dia depois do início da viagem, em Paris. Seria uma viagem longa e cansativa. Mas seria perfeita, e era uma oportunidade que não teriam tão cedo. Além disso, Emílio ainda tinha a face um tanto deformada, pelas queimaduras, mas as bolhas já haviam se desfeito. Seus braços e os de Michelle, também. A dilatada duração da viagem seria positiva porque, até que pisassem em solo francês, já estariam quase normais.

     Então, Emílio agradeceu pela hospedagem, e por todos os cuidados. Prometeu, embora sem certeza, que voltaria, e que daria um jeito de retribuir o favor. Entraram em um táxi, e partiram para o aeroporto.


     Após um trânsito infernal, que já esperavam ter de enfrentar, chegaram ao aeroporto. Michelle já tinha em mãos as passagens, e a espera rotineira, que sempre antecede as viagens de avião, terminou antecipadamente. Circunstâncias extraordinárias tornavam necessário adiar ou cancelar o vôo, ou mesmo antecipá-lo, aproveitando a brecha de um plano de vôo já cancelado. Esta idéia que foi colocada como opção para os passageiros, que estavam já todos presentes, e estes concordaram prontamente. Não demoraram a entrar no avião.

     O piloto já se apresentava, quando, repentinamente, como ocorresse um erro, começou a tocar, no avião,  em volume bastante alto, uma belíssima canção dos Beatles. "Michelle, ma belle / These are words that go together well, / My Michelle...". Desconcertado, o capitão e a tripulação tentou resolver o problema, sem muito sucesso. Alguns passageiros acharam graça, outros, não tão bem humorados, resmungaram algumas queixas sobre a evidente desorganização, ou mesmo a eventual incompetência da tripulação. Tão inesperado quanto começou, a música foi interrompida. Para a tripulação, um alívio. Para os passageiros, de modo geral, o fim de uma piada. Para Michelle, uma mensagem. A última frase cantada no rádio foi "I will say the only words I know that you'll understand", "Eu direi apenas as palavras que sei que você entenderá". Era como um sinal, uma senha antiga, que ela já usara no passado, para avisar que ficasse atenta a sinais. Mas, ela não usava aquela senha havia anos, e nunca de forma tão ousada. E ninguém mais sabia que ela estaria ali. Ou não deviam saber, pelo menos. Quem ainda os seguia tão de perto?

     Em poucas horas, a primeira parada. Michelle e Emílio - o casal Dubois, para todos os efeitos - tiveram que se separar dos demais passageiros, para tomar um outro avião. Foram indicados para um vôo que sairia imediatamente, sequer tendo tempo para esticar as pernas.

     Pegaram o novo avião. Após todo o procedimento de praxe, levantaram vôo. Eva não conseguia entender. Nenhuma mensagem lhe chegara, ainda. Àquela altura dos acontecimentos, já deveria tê-las recebido. Teria sido coincidência? Ou será que ela deixara passar algo importante? Aquele mistério lhe incomodava sobremaneira, enquanto Emílio dormia tranquilamente, ao seu lado. Incomodava-lhe tanto, que ela terminou não sentindo o tempo passar. Em poucas horas, o avião aterrissava em solo recifense, realizando uma inconveniente guinada na viagem, e prejudicando gravemente todos os seus planos.

     Foi assim, por acidente, que o suposto casal Dubois desembarcou em Recife, e teve sua viagem interrompida. Constatado o engano, não mais se podia fazer algo, imediatamente, sem correr o risco de ver nascer o Sol. E o dinheiro minguara. Estavam, novamente, prisioneiros da sorte.


     O Aeroporto Internacional dos Guararapes, modernamente belo, foi obscurecido aos seus olhos, diante do impasse. Mas, muito em breve, tudo se explicaria.

     - Walia?! - Espantou-se Michelle ao ver, diante de si um senhor forte, bem aparentado.
     - Quem? - Estranhou Emílio o espanto de Michelle.

     O senhor, que os aguardava com os olhos fixos na abatida Michelle, era uma figura imponente. Tinha a barba crescida, cor de creme, vistosa e bem cuidada. Creme, também, era a cor de seus cabelos, com grossas tranças por detrás de si, e guardados sob uma discreta boina, que remetia a paisagens francesas. Aparentava ter seus cinqüenta e tantos anos. Mas, Emílio já percebera, não se podia fiar nas aparências, quando, possivelmente, se trata de um vampiro. Não demorou até que aquele senhor imponente e quase majestoso se dirigisse a Michelle, em um idioma que a Emílio pareceu completamente estranho. Para Eva, que finalmente, após o choque, reassumiu o caráter de agente, o idioma não era tão desconhecido. O teor do diálogo, enquanto caminhavam, foi algo semelhante a isto:

     - Você solicitou a sua audiência particular e não compareceu, quando chamada. Optou por fugir, como se lhe quiséssemos algum mal.
     - Alguém nos quer mal, sim, Grande Líder! E acreditei que este alguém nos teria enviado o recado que, porventura, era vosso. Como poderia eu confiar?
     - Pois, para sua sorte, estávamos monitorando vocês. Gabriel nos foi de grande ajuda, nisso também.
     - Não devíamos ir a um lugar mais reservado? - sugeriu Eva, quando viu que entravam na praça de alimentação - Chamamos muita atenção, aqui.
     - Um aeroporto internacional é um local apropriado, para se conversar em qualquer idioma. Ninguém estranha. Também, se alguém aqui for capaz de compreender um idioma escandinavo arcaico, certamente já conhece os segredos que pretendemos esconder. Mas, explique-me o que faziam. Parece-me que tinham planos de ir à França. Paris?
     Dizendo isto, sentavam-se à mesa. Emílio ouvia a tudo, atentamente, embora sem entender uma só palavra.
     - Como eu vos disse, Senhor, cheguei à conclusão de que não poderia confiar em Gabriel, vosso mensageiro, pois o abrigo a que ele nos enviou, em São Paulo, estava repleto de armadilhas. Como pode compreender, - e Eva exibia suas queimaduras, e as de Emilio - chegamos a nos ferir, e corremos mesmo o risco de morrer. Resolvi, portanto, que seria a nossa melhor solução ir ter pessoalmente com o senhor, na sede da Ordem, em Paris.
     - Realmente, me foi reportado a sede brasileira das reuniões do Grande Conselho foi incendiada e destruída, e o nosso esconderijo em São Paulo foi encontrado repleto de armadilhas. Como você é vítima, portanto diretamente interessada neste assunto, e dado que é de total confiança, tenho de informá-la de que foi secretamente aberta uma investigação para averiguar quem entre nós é o traidor.
     - Será possível que haja um traidor dentro do Grande Conselho da Ordem?
     - Tudo é possível, minha cara.

     A conversa seguiu seu rumo, em tom cada vez menos formal. Walia era o vampiro mais antigo de que se tinha notícia, e Michelle também estava entre os de maior idade. Logo, se conheciam muito bem, e tinham bastante intimidade, para não se prenderem tanto a formalidades. Então, questionada sobre a sobrevivência de Emílio, contou-lhe o que ocorrera, passo a passo, e suas teorias a respeito. O senhor não pôde conter um certo olhar de reprovação, pela conduta libertina de Eva, que, segundo ele avaliava, foi tomada pelo impulso da paixão e desobedecera à Ordem, mantendo a vida de um novo vampiro, completamente descontrolado. Ainda assim, ele prometeu interceder por ela. Ora, se por ela intercedia o Grande Líder, ela podia respirar aliviada. Somente, então, foram apresentados Walia e Emílio. E, novamente, sem que Emílio pudesse compreender em que idioma falavam, ela pediu, formalmente, autorização para apadrinhar Emílio na sua eventual entrada para a Ordem. Declarando que Emílio já fora, em tudo de sua vida, investigado, Walia se prontificou a agilizar a iniciação.

     Quando, mais tarde, Michelle esclareceu a Emílio o conteúdo da conversa, ele ficou muito feliz em ver que tanta coisa teria sido esclarecida. Muito animado ficou, também, por saber da investigação. Mas, não pôde negar, era capaz de perceber o tamanho do privilégio que era estar frente-a-frente com o Grande Líder. Já começava a compreender que o Grande Conselho era um órgão dirigente da tal Ordem. O Grande Líder, no entanto, como ele começava a ver, embora não tomasse decisões por conta própria, seguia sendo alguma espécie de autoridade máxima, algo como uma verdadeira baliza para a atuação do Grande Conselho. E nisso Emílio não se enganou, posto que era exatamente essa a principal atuação do Grande Líder.

     Do aeroporto, custeados pelo Grande Líder, e por este restituídos os seus novos verdadeiros documentos  - vampiros têm documentos verdadeiros, e identidades legais renovadas de tempos em tempos -, seguiram para um hotel de luxo, cinco estrelas, em Boa Viagem. Lá, passariam o dia que iniciava, e, de lá, Eva sairia com uma nova missão: conquistar o reconhecimento de Emílio na Grande Ordem.

sábado, 13 de março de 2010

Capítulo IX – Jogo de Gato e Rato

     Preocupados, Michelle e Emílio sentaram-se à mesa. Adão retomou aquela aparência clássica, imóvel, que sempre tivera para Emílio. Permanecia calado e sério, em pé, inequivocamente concentrado, e certamente fechado em seu universo particular.

     Não poderiam sair antes do cair da noite. Bem, se eram reféns, era certo que alguém planejava qualquer coisa contra eles, e esse alguém planejara tudo em seus mínimos detalhes, segundo lhes pareceu. Por outro lado, sabiam que, se sobrevivessem até a noite, poderiam fugir, e buscar a ajuda direta do Conselho.

     As horas passam, quietas e mórbidas como antigos edifícios abandonados, e a tensão somente aumenta. Tudo permanece inalterado. Emílio ainda sente uma sede insuportável, que não poderia ser saciada por água alguma. E fome, também. Mas não há nada na despensa. No lugar da comida, uma gaiola sem portas, completamente fechada, com um enorme rato, dentro; fora, a seguinte mensagem:

“Caro Emílio,
Sente fome? Ou, seria sede? Delicie-se com esta delicada iguaria, por enquanto. Mais tarde, poderá sair desta casa, e experimentar a Vida que Lionel lhe deu. Você é livre, Emílio, jamais precisará submeter-se à Ordem, se não o quiser! Mas, lembre-se: no jogo de gato e rato, às vezes se é o gato, outras vezes, não…”


     Como assim? Sabiam que ele estaria ali, o que, até certo ponto, não era novidade. Mas sabiam que tinha sede. Mesmo o relatório de Michelle apenas revelara sobre a morte de Adam. Nada havia sido dito a ninguém sobre seu ataque, ou sua sede. E, havia uma dúvida, mais: a que “Ordem” não precisaria se submeter?

     Eva e Adão se entreolharam, por um instante, e compreenderam um ao outro. Mas não concordavam entre si. Eva estava decidida a esclarecer a Emílio sobre a Ordem. Afinal, ele já conhecia o Grande Conselho, de um lado, e a Acção, do outro. Adão achava que ele sabia o que o sabia por permissão do Grande Conselho, e ainda assim sabia demais. Não era seguro que soubesse mais, agora. Mas, ambos compreenderam rapidamente que o intento deste recado era confundir a cabeça de Emílio. E havia funcionado.

     Antes que pudessem reagir, Emílio já havia  rompido a gaiola, e, dominada sua repulsa, havia abocanhado com vontade o enorme roedor.

     - Não, Emílio! Não!
     O rato se debatia, mas Emílio o segurava com as duas mãos. Aplicava-lhe mais força do que o necessário, a ponto de quebrar-lhe alguns de seus pequenos ossos. Com uma voracidade incrível, Emílio logo lhe havia sorvido todo o sangue.
     - Não dá nem para o começo! – queixou-se Emílio.
     - É claro que não, Emílio! Não vê que isto foi feito com o firme propósito de deixá-lo sem controle?

     De fato, ele estava completamente descontrolado. Agitado, ansioso, irritado. Emílio olhava em torno, e não compreendia como ou porque os demais não sentiam, também, a falta que ele sentia de sangue. Talvez, por isso, eles não o compreendessem.

     Percebendo que ele começava a sair de si, prevendo que Emílio surtaria, Adão precipitou-se inutilmente contra ele. Inutilmente, porque, antes que lhe pudesse alcançar, Emílio já havia estourado violentamente em direção a uma grande janela, a poucos metros da despensa.

     Como numa explosão de luz, uma luminosidade insuportável tomou o ambiente, arremessando Emílio para trás. Sim, ele conseguira abrir a pesada janela. O susto que o arremessou para trás fez com que caísse pesadamente, a cabeça contra o chão. Sua visão se apagou imediatamente após o clarão, e os sons em torno dele, cada vez mais distantes, desapareceram.


     - O que houve?
     Emílio acordou atordoado, a visão turva, os braços e a face a lhe doerem imensamente. Doíam-lhe com insuportável intensidade até os ossos.
     - Você teve um surto, Emílio. Abriu a janela.
     Assustado, Emílio levantou-se. Começava a lembrar. Olhou para os braços, e viu, com dificuldade, que estavam tomados de bolhas.
     - Tivemos sorte. – retomou Michelle – A luz que incidiu sobre nós não poderia ser tão intensa. Esta janela é direcionada para o oriente, e já passava consideravelmente do meio-dia, quando você a abriu. Não pude ver com atenção, mas tenho a impressão de que alguém colocou espelhos, ou algum metal, estrategicamente, para que a luz incidisse sobre a janela, e a radiação solar se concentrasse sobre nós. Teríamos morrido, se eu não tivesse conseguido fechar a janela.
     - Eu nos joguei contra a armadilha.
     - Sim, você acionou a ratoeira.

     Claro. A mensagem. Eles eram os ratos. Romper a gaiola não era liberdade, mas entregar-se ao predador. Permanecer na casa, então, era a segurança deles. Michelle parecia concordar com o que ele pensava.
     - Você lê pensamentos?
     - Não, ninguém faz isso.
     - Como parece compreender o que eu penso?
     - O corpo fala. a linguagem corporal, o olhar… Tudo denuncia, sem palavras, muito do que você pensa, sem que você perceba.
     - Mas, não tanto assim.
     - Com o passar de décadas, e os sentidos apurados de vampiro, você vai entender o que lhe digo. Dedique-se um pouco mais, e perceberá.

     Um breve silêncio se fez ouvir. Mas, Emílio percebeu que havia algo de errado.
     - Onde está Adão?
     - Pedi que ele se ausentasse, para que não brigasse com você.
     Só então, Emílio percebeu que Eva também estava bastante queimada, e seus braços também estavam tomados por bolhas.
     - Você também se queimou... E ele, está bem?
     - Ele teve sorte. Ao tentar segurar você, ele caiu no chão, e isso o retirou da incidência direta da radiação. Ele está apenas despelando um pouco, e estará como novo até o fim do dia.

     Emílio começava a lembrar mais detalhadamente da cena.
     - Eu só faço besteira, não é?
     - Não, mon amour, você não tem culpa. É por isso, que o Conselho somente admite a transformação de novatos quando membros os apadrinham. O padrinho é sempre um vampiro que seja experiente o bastante, e somente ele pode transformar o novato em vampiro, pois, assim, será capaz de exercer uma grande influência, ou até controle, sobre o novato, nestes momentos difíceis. Você não tem este outro lado da ponte, mon amour. Ninguém pode ajudá-lo, e ninguém pode culpá-lo.
     - Adão não parece pensar assim.
     - Ele está de cabeça quente. E tem as suas razões, para tal. Mas, não há de ficar sempre assim.

     Mon amour. Ela repetira esta expressão mais duas vezes. Ele enchia o peito de orgulho e felicidade, por saber que ela também o amava. Mas a dor ainda o incomodava muito, para que se permitisse algum ânimo.
     - Por que não nos regeneramos?
     - As queimaduras do sol?
     - Sim.
     - Nós não temos mais sangue. O fluido que temos em seu lugar ajuda a recuperar feridas mais rapidamente, mas não consegue lidar muito bem com queimaduras. Como nosso organismo já quase não suporta a radiação solar, nos queimamos fortemente. Demoraremos alguns dias para nos curarmos.
     - Me desculpe!
     - Pelo que?
     - Em última instância, fui eu quem queimou você...
     - Já disse que não foi culpa sua.

     Michelle começou a cuidar do rosto de Emílio, que também doía. Foi quando ele se deu conta de que também tinha bolhas no rosto. Devia estar parecendo um monstro. Dos males, o menor: ela somente queimara os braços.

     Adão retornou, sério. Na verdade, carrancudo. Sua expressão era ainda mais insondável do que de costume. Emílio tentou iniciar um diálogo, mas aquele olhar furioso de guerreiro nórdico o intimidou. Adão parecia, também, reprovar Michelle, por apoiar Emílio, e por estar de seu lado. Passaram o resto do dia neste clima desagradável, até o anoitecer.


     Quando a escuridão começava a tomar o céu, Eva saiu, na frente. Não havia passagens secretas saindo diretamente da casa, mas havia uma boa rota de fuga do lado de fora. Por isso, saiu com o objetivo de checar a segurança de sua fuga. Chamou os rapazes, e mostrou enormes espelhos côncavos, voltados para as janelas da casa, de modo a garantir altíssima intensidade de luz e radiação solares contra a casa, durante quase todo o dia. Algumas janelas pareciam, até, já estar levemente queimadas, somente resistindo devido à grossa camada de tinta, ou, talvez, à boa qualidade da madeira.

     Quem armara seu cativeiro não estava de brincadeira, pensaram. Não facilitaria a sua fuga. Aliás, fugir, até então, estava parecendo uma tarefa muito fácil. Havia algo de errado. Sim, ela tinha certeza, havia algo de errado. Eva congelou imediatamente. Emílio quase esbarrou nela, e iria perguntar algo sobre a parada brusca, pelo que ela fez um sinal: "quieto!", parecia ela dizer. Adão olhou para Eva, e ambos se abaixaram, puxando imediatamente Emílio para dentro do mato. Suas peles já começavam a esquentar e arder, como estivessem em uma sauna.

     Mesmo após fugirem para o mato, persistia a sensação de ardência em suas peles. Correram para o mais distante possível. Emílio não entendeu nada. Que diabos poderia estar havendo?
     - Deram-se ao trabalho de construir dezenas de refletores de radiação ultra-violeta.
     - Como? - espantou-se Emílio.
     - Uma pessoa comum poderia estar no quintal daquela casa, em trajes de banho, nesta noite, e sairia de lá com o bronze muitíssimo bem definido. Construíram uma grande câmara de bronzeamento artificial, naquele quintal. - Explicou Eva - Felizmente, a distância entre nós e os refletores permitiu que fugíssemos, sem maiores danos às nossas peles.
     - Mas, se não era suficiente para nos fazer realmente mal, por que se deram a tanto trabalho?
     - Talvez, esperassem que não fôssemos perceber. Ou não. Não são tão ingênuos assim...
     - Um aviso, talvez?
     - É, pode ser... Ou esperavam que dispersássemos...
     - Mas, quem pode ter este interesse? E por que?

     Emílio tinha os nervos à flor da pele. Perdeu finalmente o controle, gritando a plenos pulmões:
     - Por que não vem nos pegar? Vamos, apareça! Eu sou divertido?! Apareça! - Eva tentava contê-lo - Não, agora, eles têm que me ouvir. Vamos! Vai ser assim? O gato tem que brincar com a comida, não é? Pois você já brincou, venha me pegar!

     Adão não se deu ao trabalho de esperar que Emílio se calasse. Não era obrigado a se arriscar mais por quem não tinha a mínima consideração por seus esforços de sobrevivência. Saiu em disparada, deixando os dois sozinhos.


     Emílio e Eva aguardaram o melhor momento, e seguiram rumo à saída da mata. Não deveriam aparecer em público, pois chamariam muita atenção para si. Este raciocínio fez Emílio ter uma epifania. Suas queimaduras eram uma marca, uma identificação. Eles eram seguidos por alguém, passo a passo, ele tinha certeza disso. Mas, por que ninguém fazia nada?

     Repentinamente, sem que eles esperassem, Gabriel lhes apareceu, como se caído do céu. Entregou-lhes uma grande quantia em dinheiro, e um endereço, que dizia ser seu próximo abrigo, e de onde teriam contato direto com o Grande Conselho. Disse-lhes também que Adão já estaria lá, e seria levado de volta a Oslo, onde tiraria férias. Eles deveriam ser enviados para a França, para que Eva tivesse sua audiência com o Grande Líder. Pegaram o dinheiro, mas sua confiança não foi suficiente para que seguissem ao endereço indicado.

     Eva levou Emílio a uma casa muito simples, onde havia um senhor bastante distinto. Entraram.
     - Hallo, Her Stern!
     - Salut, madame! - sorriu - Pode falar em português, senhorita. Não vai querer que o jovem pense que escondemos algo dele.

     Como ele sabia que Emílio era brasileiro?

     - Então, Stern, serei direta com o senhor. Preciso de passaportes urgentemente.
     - Para quando?
     - Sairemos do Brasil no próximo vôo noturno que conseguirmos.
     - E têm onde ficar, até lá?
     - O senhor tem alguma indicação segura?
     - Podem ficar aqui, até a próxima noite. Depois, sei que não precisarão mais de mim.

     O olhar daquele simpático senhor despertava bastante confiança em Emílio. Michelle cochichou que seu nome era Katze, e significava "gato", em alemão. Emílio riu da ironia, mas não pôde evitar um arrepio na espinha. Já estava prestes a amanhecer, quando se estabeleceram no único quarto da pequena casa, e o Sr. Katze saía para seguir sua rotina diária.

Pablo de Araújo Gomes

sábado, 6 de março de 2010

Capítulo VIII - Um Bilhete Misterioso

     O silêncio no abrigo era consternador. Adão, sempre tão impassível, habituado a aparentar indiferença a tudo, já não parecia tão diferente de qualquer mortal. E não era capaz de conter o espanto, talvez até reverência, quando dirigia o olhar a Emílio. Michelle, embora mantivesse uma postura séria e respeitosa diante de Adão, mais parecia uma adolescente apaixonada, a cochichar segredos nos ouvidos de Emílio. Este, por sua vez, parecia ter consumido qualquer substância estimulante. Estava elétrico, impaciente, tinha uma energia sobrehumana a lhe rasgar o corpo. E sentia muita sede, uma sede que jamais sonhara sentir com tamanha intensidade. Uma fatal sede de sangue.

     Michelle continuava a tentar acalmá-lo, mas seu controle sobre o jovem rapaz não era pleno. Adão assistia a tudo atônito. Assim se passou todo o dia, até que chegasse a noite.

     Quando o sol se punha, saíram em disparada, pela noite. Não arriscariam adentrar na cidade, ou qualquer aglomeração urbana. Seria estupidez. Sabiam que eram esperados em qualquer das pequenas cidades vizinhas, inclusive nas poucas e minúsculas vilas rurais dos arredores. Todos os caçadores haviam sido alocados para aquela região. Evitaram, então, qualquer trilha ou estrada, que já não eram muitas naquela região, e seguiram caminhando a passos extremamente rápidos. O caminho era silencioso, e nada mais acontecia. O silêncio só era quebrado pelo ruído de seus passos acelerados, e pelo próprio som da noite.

     Andando por horas, em silêncio, tiveram a sensação de eternidade. A cada segundo, a tensão aumentava, juntamente com o medo de serem descobertos. Em cada cabeça, pululavam dúvidas. Em cada mente, mil e uma informações desencontradas. Somente Eva parecia compreender algo do que lhes ocorria, mas seu ar atento e solene afugentava qualquer impulso de questionamento. A sensação de eternidade, no entanto, não passava de uma ilusão. Não demorou para perceberem que o sol queria raiar.

     - Já vai amanhecer? Que horas... que dia é hoje? - perguntou Emílio, atordoado.

     Adão parecia se divertir com a confusão de Emílio. Pelo menos, permitiu-se um sorriso de canto de boca. Eva não estava tão à vontade, pois ainda não encontrara o esperado abrigo. A instrução de seu superior havia sido a de seguir rumo ao leste, ininterruptamente, em ritmo bastante acelerado. Ela havia cumprido à risca, mas nada lhe aparecia. Quando já amaldiçoava a sorte, deparou-se com uma pequena pousada.

     Na recepção, perguntaram onde estavam, exatamente. Sequer compreenderam o nome da região. Jamais haviam ouvido falar em nada semelhante. Mas, nada lhes pareceu extraordinário, pelo menos até consultarem o mapa extendido na parede da recepção. Não poderiam acreditar no que viam. Sua caminhada frenética os levara a avançar quase 150 quilômetros. Feitas as contas, significa que sua velocidade média ultrapassara, tranqüilamente, os 13 km/h, em uma caminhada ininterrupta por terrenos acidentados, cheios de declives e obstáculos. Mesmo muitos atletas de ponta não atingiriam esta velocidade, em tal percurso, ou não chegariam ao fim nestas condições. Haviam caminhado por mais de onze horas, aproveitando o período em que o sol se ausentara da abóbada celeste. Nem mesmo Eva, com mais de mil anos de vida, havia realizado tal esforço. Suspensa a atividade física, sentiam o metabolismo declinar, e começavam a perceber o insuportável peso de suas pernas. Eram puro cansaço. A melhor notícia, no entanto, é que haviam ultrapassado consideravelmente o perímetro de risco, sem sequer desconfiar. Possivelmente, este era o plano de seus superiores.

     Ao pedirem os quartos, descobriram que já estava tudo arranjado. Havia dois quartos simples de solteiros reservados. Os únicos quartos de solteiro da minúscula pousada. Também os aguardava um senhor de nome Gabriel, na melhor suíte da pousada, e que queria vê-los logo que se acomodassem.

     Eva não perdeu tempo, e foi direto para o quarto. Gabriel era um mensageiro, um mercenário contratado para ser o contato deles com o conselho. Ela reportou o sucesso da missão, e a "inevitável neutralização" de Adam Bowie durante a fuga. Quis ocultar, pelo menos por enquanto, a sobrevivência de Emílio, mas a presença física dele seria um claro empecilho. Solicitou, no entanto, uma audiência direta e pessoal com o grande líder, para revelar em detalhes confidenciais o que havia acontecido. A sobrevida de Emílio levantou dúvidas quanto ao sucesso da missão, mas a Srta. Michelle Delacroix tinha um bom crédito: em séculos de atividade como agente, Eva jamais falhara.

     Os seguintes procedimentos foram traçados. A comunidade possuía meios para executar planos ousados, cuja execução aconteceria sob o comando de Gabriel. Alguém não vampirizado, fazendo-se de turista, ficaria encarregado de induzir algum cidadão local a entrar na mata, e encontrar os restos mortais do presidente da Acção. Àquela altura, certamente, já haviam sido dilacerados por uma onça, ou qualquer dos predadores comuns naquela região. Os espiões infiltrados na Acção deveriam acompanhar, dentro desta organização, quais os efeitos e as reações da morte de seu líder. E, muito importante, um veículo já estaria a caminho para tirar os três vampiros dali em segurança.

     Gabriel, embora pouco entusiasmado, cedeu a suíte para o casal. Adão já caíra no sono, e os demais não demoraram a fazê-lo, exaustos que estavam.


     Começava a anoitecer, quando todos acordaram. Gabriel havia desaparecido sem deixar qualquer rastro, além das diárias pagas. E o transporte prometido os aguardava do lado de fora. Era um carro estranho, de modelo desconhecido. O estranho veículo tinha tração nas quatro enormes rodas que possuía, e firmeza digna de um tanque de guerra, mas era muito pequeno, chegando a ser apertado para os três. Também possuía a cabine de motorista isolada, e janelas absolutamente negras, para garantir a proteção dos vampiros contra a luz solar, como eram todos os carros do Conselho.

     Durante a viagem de volta, tornou-se claro o porque de usarem um carro tão peculiar. Havia de ser um carro personalizado, feito especificamente para andar por entre as estreitas trilhas, naquelas terras ermas e alagadiças. Chegaram a atravessar alguns riachos mais rasos, em meio ao terreno extremamente acidentado. Mesmo à noite, o calor era insuportável, mas Emílio não pôde deixar de perceber, com satisfação, que não gerava interesse nos incômodos mosquitos, que pareciam vir de toda a parte.

     Emílio também pôde notar que era capaz de ouvir qualquer movimentação no meio da mata, no meio da noite. Foi capaz de, sem muito esforço, identificar a distância dos sons que fazia a noite, e identificar formas e tamanho dos animais noturnos em um raio de algumas dezenas de metros.

     - Nunca imaginei que a floresta fosse tão viva, à noite.
     - Você teve esta oportunidade, ontem.
     - Ontem, eu só conseguia ouvir bem os meus próprios pensamentos. - respondeu, distante, Emílio.

     Antes, ainda, que amanhecesse, chegaram a uma cidade de porte um pouco maior, onde migraram para um outro carro, mais confortável e espaçoso, e de onde seguiram por rodovias. As rodovias estavam em péssimas condições, mas o balanço do carro não chegava a ser tão intenso quanto no meio da floresta. Não mais suportando o mistério, Adão se dirigiu a Eva.

     - O que houve, exatamente, para que Emílio pudesse sobreviver?
     - Eu tenho uma teoria. Jamais obtive autorização do conselho, para testá-la, e continuo não tendo tal autorização. - segundos de silêncio - Mas as circunstâncias me fizeram ignorar o conselho. A nossa saliva... A substância que nos ajuda a sugar o sangue, por ser anticoagulante, parece ter outras propriedades ainda desconhecidas. Parece-me que, quando removemos a alma, o corpo precisa se apegar a algo, para sobreviver. Talvez, ao introduzirmos algo de nós em quem mordemos, criemos uma ponte entre nós e este alguém. Se sobrar algum sangue, e o humano vitimado sobreviver ao ataque, logo será transformado em vampiro.
     - É isso que explica a dependência? - Emílio indaga, curioso.
     - Segundo a minha teoria, sim. Enquanto houver esta ponte, e as duas extremidades por ela ligadas, o novo vampiro poderá sobreviver.
     - E, assim, deixamos de se humanos...
     - Jamais deixamos de ser humanos, Emílio. Nosso organismo sofre algumas modificações, nosso metabolismo é alterado, mas, em essência, continuamos humanos. Temos sentimentos, desejos, habilidades e uma infinidade de instintos, mais afiados do que nunca. Nunca, antes, fomos tão homo sapiens, em nossas vidas.
     - Vendo por este ponto de vista, faz bastante sentido. E por que não passa esta vontade insuportável de beber sangue?

     Adão chegou a dar um pequeno sorriso. Antes que Emílio pudesse percebê-lo, no entanto, Michelle o censurou. Sabia que ele se divertia com esta dificuldade de Emílio, como quem vê um amigo ficar completamente bêbado pela primeira vez. Não era correto divertir-se com isto.

     - Vamos colocar da seguinte maneira - disse o próprio Adão, contendo o riso - Até experimentar o sexo, você tem bastante curiosidade. Depois que prova como é bom, não lhe sai da cabeça o desejo de reviver a sensação, e torna-se praticamente insuportável a idéia de ficar sem. Agora, multiplique por mil, e entenderá o que está sentindo...

     Michelle riu-se por dentro, pela explicação. Era uma brincadeira comum, entre vampiros homens, fazer esta comparação para explicar a novatos, mas isto não fazia da comparação algo menos ridículo. De qualquer forma, funcionava. Emílio pareceu compreender imediatamente o que queria dizer.

     Como desse um laço, Michelle envolveu Emílio em um abraço apertado, fazendo-o aninhar-se em seu colo. Tentou induzir seu sono, mas não conseguiu. Emílio não era tão controlável como se poderia esperar. Pensou na ponte. Talvez, fosse mais como uma corda, que impede a queda no precipício, e todo o processo que lhe garantira a vida tenha possibilitado que ele tivesse alguma independência. Talvez, a corda que o ligara a Lionel ainda o ligasse a algo, ou o sangue que bebera o estivesse ajudando a agarrar-se a alguma pedra. O fato é que ela, Michelle, lhe garantira a sobrevivência, mas a influência que ela lhe exercia era muito limitada.


     Passavam-se horas, em que conversavam trivialidades, ou, pior, não falavam nada. Era comum o sono apertar, mas ninguém aguentava mais dormir. Alguns lanches frios já os aguardavam no carro e não demoraram muito a ser consumidos. Então, logo que voltou a anoitecer, fizeram uma pausa para o lanche.

     Na pequena lanchonete, Emílio chamou a atenção da bela e jovem garçonete.
     - O que ela tanto olha em você, Emílio?
     - Talvez, ela me ache bonito, não sei...

     Na verdade, sem saber, Emílio a seduzia. Ao notar, Michelle indignou-se.

     - Emílio, você não vai mordê-la! - cochichou em seu ouvido.

     Emílio não era capaz de acreditar. Que incrível capacidade de percepção, a de Michelle, ao perceber um pensamento seu, que ele mesmo, até então, não havia notado. Ele sentia dentro de si que já havia arquitetado um plano, e não se sentia capaz de se conter. Precisava realizá-lo. Precisava beber um pouco, saciar-se. Não suportava, realmente, a idéia de não beber o sangue daquela jovem tão atraente.

     Já Michelle, atenta, tinha outras preocupações. A primeira: Emílio precisaria se conter, se desejasse ser acolhido, em vez de definitivamente degredado da comunidade. A segunda preocupação deveria ser menos grave, mas não a incomodava menos. Por que, de tantas vítimas possíveis, que passavam para um lado e outro, ele havia escolhido justo uma garota? E por que uma garota tão bela? Michelle teve que conter uma fúria enorme dentro de si, para não fazer uma cena de ciúmes. Ela não sentia nada semelhante havia mais de mil anos, quando uma cortesã se insinuou para o seu noivo, às vésperas do casamento. Notar o que sentia também não ajudou muito. Ela respirava fundo, com o intuito de relaxar, mas sentia o cheiro de fertilidade da jovem invadir suas narinas. Aquilo, talvez, estivesse sendo sentido por Emílio, também. Como agir de forma sutil?

     E a jovem seguia com sorrisos e atenções para Emílio, quase ignorando os demais da mesa. Limitava-se a receber seus pedidos, e trazê-los com prestreza. Mas falava com eles, e a eles se dirigia, sem tirar os olhos de Emílio, que parecia corresponder cada olhar.

     Sob a acirrada vigilância de Michelle, no entanto, Emílio não pôde pôr seu plano em curso. Sem quase comer nada, ambos optaram por pedir que a comida fosse embalada para viagem. Sensível ao clima que tomava o ambiente, Adão também fez o mesmo, apesar da fome. O alívio foi grande, quando entraram no carro. Ou não. Michelle percebeu que não iria poder descuidar de Emílio, por um bom tempo. E Emílio não conseguia parar de pensar na chance que perdera de saborear um pouco de sangue. Por muito tempo, ainda, seguraram, imóveis, seus grandes sanduíches, e suas caixas de suco.

     Após alguns dias de longa jornada, finalmente, estavam em São Paulo. Não no centro, não na cidade, mas em uma área bastante verde, nos entornos da região metropolitana. O carro entrou em uma garagem semelhante à da sede do conselho, mas menor. Michelle explicou a Emílio que aquela era uma das casas que já usara em missões, décadas atrás. Lá, recobrariam as energias nos próximos dias.

     Subiram as escadarias, e já estavam dentro de uma casa simples, mas bastante aconchegante. Sobre a mesa, um envelope, em que se lia: "à Srta. Michelle Delacroix". Ela o abriu, e encontrou um bilhete datado daquele mesmo dia, em que se lia um poema.

     Ela ficou desconcertada. A primeira sensação foi da mulher lisongeada, a segunda foi a da mulher invadida. Finalmente, ela se deu conta de que poucos sabiam que ela estaria lá, e estes poucos eram os membros da cúpula do Grande Conselho. Nenhum deles jamais lhe enviaria um bilhete anônimo. Emílio, ao ler, quedou-se incapaz de se conter, tamanhos eram seus ciúmes. Adão gargalhou pela primeira vez em anos, com sua potente voz, o que lhes deu a impressão de que trovejava no céu. Mas a situação era séria. Havia anos que ela não entrava ali. O bilhete era anônimo. Quem mais saberia que eles estavam ali? Esta preocupação logo assumiu caráter de urgência. Eram nove horas da manhã, os telefones não davam linha, o computador não funcionava. O carro não mais se encontrava na garagem. Estavam presos e incomunicáveis. O que lhes aguardava?


Pablo de Araújo Gomes